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terça-feira, 6 de setembro de 2011

Crise estrutural do capital e precarização do homem-que-trabalha - Giovanni Alves


A verdadeira crise do nosso tempo histórico não é a crise das economias capitalistas, mas sim a crise do homem como sujeito histórico de classe, isto é, ser humano-genérico capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões.  É importante salientar que crise não significa morte do sujeito histórico de classe, muito menos sua supressão irremediável, mas tão–somente a explicitação plena da ameaça insuportável à perspectiva de futuro, risco de desefetivação plena do ser genérico do homem e, ao mesmo tempo, oportunidade histórica para a formação da consciência de classe e, portanto, para a emergência da classe social de homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e estão imersos na condição de proletariedade.

A crise é o momento em que se explicita, em sua dramaticidade histórica (e diriamos hoje, midiática), a “alienação” como um poder “insuportável”, isto é, um poder contra o qual homens e mulheres enquanto individualidades pessoais e sob determinadas condições, se insurgem ou se indignam na medida em que se torna perceptível, mesmo no plano da consciência contingente de classe, a sua condição de proletariedade.

Na Ideologia Alemã, de 1847, Karl Marx e Friedrich Engels, conseguiram apreender, com genialidade visionária, o que torna-se hoje cada vez mais perceptível no capitalismo global do século XXI:  a constituição de uma massa da humanidade como massa totalmente “destituída de propriedade” e que se encontra, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riquezas e de cultura existente de fato.

Para Marx e Engels, a explicitação plena da condição de proletariedade – e que está na raiz dos movimentos de jovens precários no mundo do capitalismo mais desenvolvido – pressupõem um alto grau de seu desenvolvimento das forças produtivas, que segundo eles, “con­tém simultaneamente uma verdadeira existência hu­mana empírica, dada num plano histórico-mundial e não na vida puramente local dos homens”.  E salientam: “Apenas com este desenvolvimento universal das forças produtivas dá-se um intercâmbio universal dos homens, em virtude do qual, de um lado, o fenômeno da massa ‘destituída de propriedade’ se produz simultaneamente em todos os povos (concorrência universal), fazendo com que cada um deles dependa das revoluções dos outros; e, finalmente, coloca indivíduos empiricamente univer­sais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais”.

Deste modo, é sob as condições históricas da crise do sujeito de classe que se coloca a oportunidade radical de sua afirmação objetiva e subjetiva, seja enquanto massa “destituida de propriedade”, seja enquanto indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais” (não é desprezivel o papel da Internet com seus blogs alternativos e redes sociais – como facebook e twitter – na construção das individualidades histórico-mundiais).

Por outro lado, é importante salientar também que a crise estrutural do capital não significa incapacidade de crescimento (e expansão) da economia capitalista. Crise estrutural do capital não significa estagnação e colapso da economia capitalista mundial. Apesar da sua crise estrutural, o capital como sistema de acumulação de valor e modo estranhado de metabolismo social, tem-se expandido nos últimos trinta anos, apresentando, por exemplo, na passagem para o século XXI, índices exuberantes de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) nas fronteiras da modernização do capital (como Índia, China e Sudeste Asiático).

Apesar da crise financeira e crise das dívidas soberanas nos EUA e União Européia, em 2008 e 2011, é provável que, a curto ou médio prazo, as economias norte-americanas e europeias possam retomar, a duras custas, o crescimento do PIB. Entretanto, percebe-se cada vez mais que o crescimento do PIB não se traduz em bem-estar social. Pelo contrário, nas últimas décadas aumentou nos países ricos a precariedade do trabalho, a contenção dos gastos públicos, corte de direitos sociais e a corrosão do Estado-Providência. Portanto, torna-se visível, cada vez mais, a incapacidade estrutural do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social e sistema produtor de mercadorias, em realizar suas promessas civilizatórias de desenvolvimento e bem-estar social, inclusive no núcleo orgânico mais desenvolvido do capitalismo histórico.

Portanto, o sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito à incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é mais um elemento compositivo do esgotamento histórico de um modo de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.

Na verdade, a crise estrutural do capital possui as características de uma “síndrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. Como salientou Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, “a crise consiste no fato que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno verificam-se os mais variados fenômenos mórbidos” (é o que iremos tratar nos próximos artigos como sendo a barbárie social).

 A “condição crítica” da síndrome do capital é a convergência histórica de um conjunto de crescentes contradições sociometabólicas do sistema mundial do capital, principalmente a partir de meados da década de 1970. A principal delas diz respeito à contradição capital-trabalho, na medida em que é através do trabalho que o sociometabolismo do capital vincula os seres humanos à natureza: a aguda elevação da produtividade do trabalho em virtude do processo cumulativo do progresso técnico, tende a explodir a materialidade do valor-trabalho, uma “implosão” contínua e permanente no espaço-tempo comprimido do novo tempo histórico do capitalismo global. É por isso que o consumo de trabalho vivo de uma parte da força de trabalho torna-se irrelevante para o sistema do capital. (José Nun, um dos teóricos da CEPAL, irá chama-las de “massa marginal” e Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem dinheiro”). Eis a raiz da ampliação persistente da precariedade social do trabalho no plano histórico-mundial.

Em 1863, nos Grundrisse, Karl Marx conseguiu apreender o traço radical do nosso tempo histórico, ao observar que, sob o capitalismo,  “o tempo é tudo, o homem já não é nada; é, quando muito, a carcaça do tempo”. Na verdade, são as “massas marginais”, os “sujeitos monetários sem dinheiro” ou ainda os homem-carcaças – a massa da humanidade “destituída de propriedade” – que estão se insurgindo nos riots dos bairros pobres de Londres ou nos movimentos sociais do precariato indignado que ocupa as praças de Lisboa e Madri.

Enfim, a crescente redundância do trabalho vivo e da força de trabalho é a “ponta do iceberg” de um sistema de metabolismo social baseado na precariedade social do trabalho e que expõe cada vez mais seus limites estruturais, demonstrando ser incapaz de conter o processo civilizatório humano-genérico.

Deste modo, podemos caracterizar a crise estrutural do capital como sendo, por um lado, no plano da objetividade social, pela (1) crise de formação (produção/realização) de valor, onde a crise capitalista aparece, cada vez mais, como sendo crise de abundância exacerbada de riqueza abstrata. Entretanto, temos salientado que o caráter radical da crise estrutural do capital, diz respeito a (2) crise de (de)formação do sujeito histórico de classe instaurado pelo estado de barbárie social. A crise de (de)formação do sujeito de classe é uma determinação tendencial do processo de precarização estrutural do trabalho que, nesse caso, aparece como precarização do homem-que-trabalha.

A precarização do trabalho não se resume àquilo que pensa a sociologia do trabalho, isto é, a mera precarização social do trabalho ou precarização dos direitos sociais e direitos do trabalho de homens e mulheres proletários. A precarização do trabalho implica também a precarização-do-homem-que-trabalha como ser humano-genérico (o que explica a pandemia de depressão e transtornos psicológicos do homem-que-vive-do-trabalho).

Sob o capitalismo global, a manipulação (ou “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital) assume proporções inéditas, inclusive na corrosão político-organizativa dos intelectuais orgânicos da classe do proletariado.  Com a disseminação intensa e ampliada de formas derivadas de valor na sociedade burguesa hipertardia, agudiza-se o fetichismo da mercadoria e as múltiplas formas de fetichismo social, que tendem a impregnar as relações humano-sociais, colocando obstáculos efetivos à formação da consciência de classe necessária e, portanto, à formação da classe social do proletariado.

O processo de dessocialização do proletariado, com impactos na consciência de classe e o poder da ideologia no bojo do capitalismo manipulatório com a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário qualitativamente novo de riscos de desefetivação do homem como ser capaz de dar respostas radicais à crise estrutural do sociometabolismo do capital em suas múltiplas dimensões. Deste modo, a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se a barbárie social, uma nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo.

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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).