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Élysée Reclus

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Pensar a decadência. O conceito de crise em princípios do século XXI

por Jorge Beinstein [*]
1. O conceito
2. As velhas crises ocidentais
    a. Precapitalismo: Roma
    b. Protocapitalismo
    c. Capitalismo industrial
    d. Capitalismo drogado
3. A crise actual

1. O conceito

O conceito de crise é extremadamente ambíguo, teve múltiplos usos, muitas vezes contraditórios. Ao longo do século XX gozou de períodos de enorme popularidade em contraste com outros em que a sua existência futura, como fenômeno social de amplitude e duração significativa, era quase descartada. Assim ocorreu nos finais da era keynesiana, nos longínquos anos 1960 e ainda muito no princípio dos anos 1970, nessa época o mito do estado burguês regulador, domador dos ciclos econômicos, fazia com que um economista de prestígio na altura época como Marchal assinalasse em 1963 que "no estado actual dos conhecimentos e das ideias, uma crise prolongada seria impossível" (Marchal J. M, 1963). Por sua vez, o prémio Nobel de economia Paul Samuelson afirmava pouco antes da crise de 1973-74: "O National Bureau of Economics Research trabalhou tão bem que de facto eliminou uma das suas próprias tarefas principais, a saber: as flutuações cíclicas" acrescentando que "Graças ao emprego apropriado de políticas monetárias e fiscais o nosso sistema de economia mista pode evitar os excessos dos booms e das depressões e desenvolver um crescimento são e sustentado" (Mandel, E., 1978).

Mas antes da primeira guerra mundial, em plena hegemonia do liberalismo e da ideologia do progressos (que muitos supunham indefinido) também era subestimada a ideia de crise, lançada ao museu das antiguidades anarquistas e marxistas catastrofistas. Mas o paraíso desmoronou em 1914.

E mais recentemente, nos anos 1990, sobretudo no segundo lustro, em pleno delírio bursátil, a prosperidade dos Estados Unidos costumava ser apresentada como o modelo do futuro, a matriz de um capitalismo que finalmente havia conseguido desencadear uma dinâmica de crescimento imparável durante um longuíssimo período. Explicavam-nos que a revolução tecnológica fazia subir os rendimentos e em consequência a procura, incitando mais revolução tecnológica, aumentando a produtividade laboral e gerando novos rendimentos, etc, etc. Mas o círculo virtuoso das tecnologias de ponta ocultava o círculo vicioso da especulação financeira que terminou por apodrecer completamente a mega fortaleza do capitalismo global. Esse frenesim neoliberal dos 90 foi abençoado nos seus princípios por personagens como Francis Fukuyama, o qual nos informava que estávamos a entrar não só numa era sem crises significativas como também no mesmíssimo "fim da história" (Fukuyama F, 1990).

Como se sabe, a origem do conceito de crise é muito remota. Se nos restringirmos à história do Ocidente costuma ser situada na Grécia Antiga. Foi empregue por Tucídides em "A guerra do Peloponeso" para assinalar o momento de decisão na batalha mas também na evolução da peste em Atenas atravessando certos pontos de inflexão, e naturalmente por Hipócrates, ancorando o tema na medicina onde esteve instalado com quase exclusividade durante muitos século nos quais apareceu timidamente em algumas reflexões sobre acontecimentos sociais.

Haverá que esperar o ingresso pleno na modernidade (a partir do século XVIII e sobretudo do XIX) para encontrar a expressão na sua extensão actual (curiosamente o seu destino é semelhante aos termos progresso e decadência). Hoje, a sua ubiquidade, o seu emprego esmagador, acabou por converter a palavra numa espécie de coringa difícil de encaixar.

Para além das utilizações individuais ou para fenômenos de pequena dimensão humana (grupais, etc) e quando entramos nos grandes processos sociais podemos distinguir "crises" extremamente breves de outras de longa duração (décadas, séculos), diferenciamos também as crises de baixa intensidade de outras que sacodem profundamente a estrutura. Também podemos distinguir aquelas causadas pela própria dinâmica do sistema em causa, ou seja, com causas endógenas, das provocadas por factores externos ao mesmo (causas exógenas). Exemplo da segunda é a crise catastrófica verificada na América em consequência da conquista europeia, exemplo das primeiras são as crises clássicas de sobreprodução do capitalismo industrial que se insinuam desde princípios do século XIX mas que se exprimem plenamente desde meados do mesmo.

Um certo reducionismo econômico limita-as ao momento de mudança de fase do ciclo, quando se passa da etapa de crescimento à de recessão deixando de lado as turbulências sistêmicas que se prolongam muito mais além desses momentos.

Além disso é saudável descartar a ideia de crises puramente económicas, elas sempre fazem parte de um conjunto social mais amplo abrangendo factos políticos, institucionais, culturais e muitos outros mais.

Simplificando talvez demasiadamente poderia definir-se a crise como uma turbulência ou perturbação importante do sistema social considerado mais além da sua duração e extensão geográfica, que pode chegar a por em perigo a sua própria existência, os seus mecanismos essenciais de reprodução. Ainda que em outros casos permita a este recompor-se, livrar-se de componentes e comportamentos nocivos e incorporar inovações salvadoras.

No primeiro caso a crise leva à decadência e a seguir ao colapso. No segundo à recomposição mais ou menos eficaz ou durável seja como sobrevivência difícil ou antes como " crise de crescimento ", própria de organismos sociais jovens ou com reservas de renovação disponíveis.

Em qualquer caso a crise é um tempo de decisão onde o sistema opta (se houver lugar para isso) entre reconstituir-se de uma ou outra maneira ou decair (também transitando algum dos vários caminhos possíveis). Na base desta opção está o fundo cultural que predispõe para um comportamento ou outro, a cultura não como stock, como património inamovível, e sim como evolução, como dinâmica de seres viventes que inclui espaços de criatividade reformista ou revolucionária e espaços de rigidez, de conservadorismo letal. Nesse sentido "a crise propõe mas a cultura dispõe" (Le Roy Ladurie, 1976), as sociedades desenvolvendo-se e agravando suas contradições chegam às crises e das suas próprias entranhas emergem (a partir de uma espécie de emaranhado, de labirinto de memórias, de reservas históricas) sinais, empurrões, solavancos, sabedorías que alentam caminhos futuros. Obviamente nunca podemos falar, em termos históricos, de sistemas fechados. É muito raro encontrá-los no passado e impensável no presente mundializado, mas ainda hoje é superficial limitar-nos às "correntes globais de mudança" (imperialistas, periféricas, regionais, etc) e ignorar as especificidades, produto de longos anos e complexos processos locais-globais, de sobrevivências e entrelaçamentos de ciclos históricos mais ou menos antigos, etc.

Como a crise é um detonador, uma caixa de pandora, de onde irrompem passados supostamente enterrados para sempre, iniciativas inconcebíveis pouco antes da turbulência, interacções de diversa amplitude geográfica, constitui sempre uma avalanche de "surpresas", muitas delas previsíveis desde que não se esteja submerso na rotina conservadora aferrada à crença ilusória de que o que foi e é certamente será.

2. As velhas crises ocidentais

As crises melhor estudadas são as ocidentais, reduzidas a esse espaço ou com repercussões mais amplas, inclusive planetárias, o que permite estabelecer uma longa sequência histórica.

a. Precapitalismo: Roma.

Agora, nos princípios do século XXI, quando assistimos à acumulação de incertezas num planeta profundamente ocidentalizado (imerso na civilização burguesa) torna-se sumamente útil iniciar o percurso remontando à crise multisecular do Império Romano. Nos últimos tempos proliferaram comparações, várias delas muito atraentes, entre o declínio romano e a situação actual do Ocidente. Denis Duclos por exemplo estabelece três similitudes notáveis (Duclos Denis, 1997). Em primeiro lugar: o agravamento extremo da opressão-exploração das classes inferiores do sistema, não como primeira acumulação sangrenta, desapiedada, apontando para a expansão imperial, e sim como último recurso perante o estancamento do processo expansivo cuja continuação traz mais custos do que benefícios. Engels assinalava a respeito que no começo do fim do Império "o estado romano havia-se convertido numa máquina gigantesca e complicada com o fim exclusivo de explorar os súbditos. Impostos, gravames e requisições de toda classe afundavam a massa da população numa pobreza cada vez mais miserável, pelas exacções dos governantes, dos arrecadadores, dos soldados... (em consequência) os bárbaros contra quais pretendia proteger os cidadãos eram esperados por estes como salvadores" (Fernandez Urbiña J., 1982). A comparação com a sobre-exploração actual da periferia combinada com défices crescentes (fiscal, comercial...) nos Estados Unidos é imediata. O caso das guerras coloniais do Iraque e do Afeganistão cujo custo provoca graves problemas financeiros à superpotência, com grandes dificuldades para enviar mais tropas ao combate, pode ser facilmente comparado com situações semelhantes do Império Romano declinante.

Em segundo lugar, o distanciamento físico das classes altas em relação ao resto (actualmente o refúgio dos ricos nos seus "bairros privados" e residências afastadas e na Roma decadente da aristocracia nos seus palácios rurais). Trata-se do aprofundamento do abismo social que reproduz de maneira ampliada duas subculturas cada vez mais separadas, expressão da desvinculação crescente da elite em relação à sua base reprodutiva. Mas em ambos os casos é também distanciamento dos de cima em relação à suas responsabilidades públicas, a função integradora do Estado é desprezada, o Estado só aparece como couto de caça, lugar de rapina. No mundo de hoje isso é evidente desde os países periféricos até o centro do Império, os Estados Unidos. Em Roma "a partir do século IV já não são mais os grandes gastos em favor da sua cidade que distinguem um homem (da classe alta)... o financiamento de edifícios públicos através de fundos privados tende a diminuir... o luxo refugia-se nos palácios e residências rurais que se tornam mundos isolados" (Rostovtzeff M. I., 1973).

Como vemos, a privatização extrema não é uma criação original dos neoliberais e das suas mafias financeiras, há mais de 1700 anos a decadente aristocracia romana já a praticava.

Em terceiro lugar, a irrupção esmagadora do parasitismo, no caso de Roma desde o século III, Rostovtzeff refere-se ao predomínio "de uma nova burguesia mesquinha... que utilizava diversos subterfúgios para eludir as obrigações impostas pelo estado e que fundava sua prosperidade na exploração e na especulação o que não impediu sua decadência" (Rostovtzeff, op. cit.). Novamente o paralelo com a mafia financeira actual é imediato. Mas também em ambos os casos o poder imperial (em Roma desde o século III e em Washington hoje) é visto pelos seus chefes como uma máquina de pilhagem, a reprodução do sistema de dominação, complexo articulador de iniciativas produtivas, culturais, políticas, institucionais, militares... e de saque, é quase reduzida a esta última função o que leva a substituir a busca de consenso só pelo emprego da força bruta. Ontem as operações punitivas dos imperadores romanos, hoje o Iraque. Parasitismo, especulação, militarização.

Mas devemos ir além dos sintomas que acabo de assinalar e entender o ciclo milenar de Roma, desde a sua origem modesta até a dominação mundial, como um processo onde a cidade escravocrata de cidadãos-soldados desenvolveu a sua "conquista numa sucessão (expansiva) de círculos concêntricos produzindo uma crescente depredação de homens e produtos da periferia. O característico do referido sistema era que excluía entre outras coisas o estado estacionário, só podia subsistir incorporando novas zonas de pilhagem" (Chaunu P., 1981). Tratava-se de uma dinâmica imparável de enriquecimento do centro imperial que gerava novas necessidades de conquista. Quando por volta do século II o Império alcançou aproximadamente os três milhões de quilómetros quadrados, chegando até à Mauritânia e a Arménia, cobriu a máxima superfície de território habitado explorável dadas as condições técnicas (meios de comunicação e transporte) da época. Nesse ponto de inflexão a reprodução do sistema só podia prosseguir aumentando os níveis de exploração de recursos naturais e humanos do espaço já conquistado. A acumulação havia atingido o teto, os mecanismos de reprodução começaram a gerar crescentes desenvolvimentos parasitários, o consenso interior foi-se deteriorando ao ritmo da autofagia do sistema. O século III marcou o princípio da decadência.

Dito em outros termos, a vitória "planetária" do Império, a ocupação de todo o "mundo" (tecnicamente) possível assinalava o princípio de uma crise -- declínio que se prolongou durante vários séculos até a desintegração física completa do sistema. Só dezassete século depois, por volta de 1900, o Ocidente voltou a ocupar o seu espaço máximo, desta vez coincidente com a totalidade do planeta. Nesse momento, salvo o Japão e alguns territórios marginais, o mundo estava integrado por países ocidentais, colónias e semicolónias do Ocidente.

A crise do império romano foi atravessada, na sua etapa inicial, por tentativas fracassadas de recomposição para entrar a seguir na decadência. Foi uma crise longa, multisecular, que engendrou formas autárquicas de sobrevivência até chegar a estruturas institucionais que agrupavam, conservavam inter-relações, laços culturais, comunicações, parasitando durante muito tempo sobre os restos do antigo império para ir engendrando pouco a pouco formas renovadas, ainda que restritas, de articulação do velho espaço. A igreja cumpriu um papel essencial não só de preservação de certa continuidade cultural como também de preparação do próximo salto imperial do Ocidente.

Visto do futuro esse universo decadente, é possível afirmar que a desintegração foi desenvolvendo os embriões do que em meados do milénio seguinte seria o caminho capitalista de dominação mundial. Le Roy Ladurie afirma-o de modo contundente: "a imensa crise pós-imperial do segundo terço ou da segunda metade do primeiro milénio da era cristã gerou um dado socio-económico radicalmente novo; mais além da época medieval, prefigura e prepara a nossa modernidade capitalista" (Le Roy Ladurie, op cit).

b. Protocapitalismo.

No longo período que se estende entre o ano 1000 e o princípio do século XVIII podemos distinguir duas grandes crises seculares: a dos meados do século XIV (até meados do século XV) e a do século XVII, ambas podem ser incluídas no termo comum de crise do protocapitalismo.

O processo de decadência reverte-se completamente por volta dos princípios do novo milénio, quando se produz no Ocidente a convergência de três fenómenos. Em primeiro lugar uma revolução técnica que gera um crescimento significativo da produtividade agrícola; a reintrodução maciça dos moinhos de água, as melhorias de sementes, o emprego de instrumentos de ferro. Estabelece-se assim um círculo virtuoso envolvendo o artesanato e a agricultura conformando o que autores como Gimpel denominam "revolução industrial" da baixa Idade Média (Gimpel J., 1985).

Segundo, a extensão de redes comerciais no interior do território e a sua conexão com pólos de comércio marítimo, o que impulsiona a reprodução de uma burguesia mercantil que começa a pressionar sobre as estruturas produtivas existentes. E terceiro, facto decisivo, o retorno da pilhagem colonial promovida pelas Cruzadas. Tudo isto desencadeia uma onda de prosperidade protocapitalista e a consequente explosão demográfica: a população da Europa Ocidental duplica entre, aproximadamente, os anos 1100 e 1300 (Gaudin T., 1988).

Mas a expansão colonial frustra-se porque as cruzadas não conseguem restaurar o domínio ocidental sobre o Mediterrâneo e o saque prolongado e sistemático da sua zona de influência. O que bloqueia a fonte decisiva de recursos do desenvolvimento ocidental.

Em princípios do século XIV retorna a penúria alimentar e a peste de 1348 abate-se sobre uma população fragilizada pela deterioração económica, produzindo uma catástrofe demográfica. Trata-se de uma crise longa, de aproximadamente um século, onde se sucedem guerras intestinas, pestes, quedas populacionais, mas também desarticulações institucionais e culturais significativas. Trata-se de um processo prolongado de trituração do mundo medieval do qual vão emergir em meados do século XV burguesia comerciais pequenas mas relativamente libertas dos controles feudais, grandes extensões de terras férteis com baixa densidade de população (mediante guerras-pestes) e um desenvolvimento de ideias técnicas (próprias ou copiadas-adaptadas) que permitirão o salto colonial de um protocapitalismo cuja área principal de expansão já não será o mundo mediterrânico e sim o Oceano Atlântico, primeiro em direcção à África ocidental e a seguir a América e depois em direcção ao Oriente.

Nesse sentido torna-se apropriada a ideia de Chaunu quando interpreta o longo desmoronamento do império romano como um processo de paedomorfósis; retroceder para a seguir saltar com mais força para a frente. "A paedomorfósis significa que a chegada a um certo ponto crítico e com a condição de não haver cometido erros irreparáveis, de não haver ido demasiado longe pelo caminho equivocado, a evolução pode retroceder, desandar boa parte do caminho que a havia conduzido a um beco sem saída e recomeçar a marcha numa nova direcção" (Chaunu, op.cit). A involução dos últimos dois terços do primeiro milénio é sucedida por um primeiro salto imperial (as cruzadas) que é seguido por um novo processo de crise e paedomorfismo, entre meados do século XIV e meados do século XV, de alta intensidade, com enormes quedas demográficas e produtivas que darão lugar ao começo da aventura planetária do Ocidente concluída com êxito por volta de 1900.

Mas no começo dessa longa marcha ocorreu uma nova crise secular, a chamada "longa crise do século XVII" que Le Roy Ladurie denomina "longo século XVII" estendendo-o desde as últimas décadas do século XVI até começos do século XVIII. Hobsbawn considera que "durante o século XVII a economia europeia sofreu uma crise geral, última fase da transição global de uma economia feudal para uma economia capitalista" (Hobsbawm, 1983). A desaceleração da grande expansão colonial europeia ocorrida em torno do século XVI aparece como pano de fundo do fenómeno (processo heterogéneo com algumas excepções mais ou menos duráveis). Como assinala Trivor-Roper "o XVII foi um século de expansão económica. Foi o século em que pela primeira vez a Europa esteve a viver a custa da Ásia, África e América" (Trevor-Roper, 1983). Atenuada a avalanche colonial desencadeia-se uma sucessão de convulsões económicas, político-militares, religiosas no fim das quais já nada se opõe ao avanço do capitalismo, os restos feudais são eliminados, a ciência moderna emerge irresistível, é a época de Newton e Descartes, de grandes avanços na matemática e na física, em suma de uma renovação intelectual que se contrapõe às penúrias económicas e a significativos retrocessos demográficos. O fim da primeira onda de prosperidade colonial desencadeia a crise que opera como um mega catalisador da reestruturação burguesa da Europa.

É possível desenvolver um modelo geral das crises anteriores ao capitalismo incluindo as formas protocapitalistas mais avançadas, não só no Ocidente como no conjunto de civilizações do planeta. Em síntese, trata-se de crises de subprodução próprias de economias onde o sector agrícola consagrado à produção de alimentos era dominante, sobredeterminando de maneira absoluta o conjunto do sistema. O ciclo clássico é o seguinte: a prosperidade agrícola [1] provoca aumento de população e do aparelho estatal e outras estruturas parasitárias (religiosas, etc), sobe a massa de tributos e demais exacções aos camponeses e a pressão alimentar geral da sociedade. Isto, em condições de rigidez técnicas a médio prazo (ou de progressos hiper lentos nas técnicas vinculadas ao desenvolvimento agrícola), termina por causar o esgotamento dos recursos naturais empregados: a produtividade da terra diminui, o que exacerba a exploração das elites sobre os camponeses e destes sobre os recursos naturais declinantes, o que agrava a situação. A fase decadente pode ser antecipada, acelerada ou provocada devido a mudança climáticas negativas (que muitas vezes não constituem factores "exógenos" e sim o resultado de manipulações depredadoras do ecosistema), guerras internas, invasões, etc. [2]

Em numerosos casos a queda produtiva, ao causar penúria alimentar, fragiliza as classes inferiores tornando-as vítimas fáceis de pestes e outras calamidades sanitárias o que costuma provocar quedas demográficas.

A escassez de alimentos causa o aumento dos seus preços (do que só se beneficiam uns poucos açambarcadores). Trata-se, em suma, de uma combinação explosiva de alta geral de preços e queda da produção. A longo ou médio prazo a catástrofe elimina população camponesa e liberta recursos (terra cultivável) o que permite recomeçar o ciclo mais adiante.

Este sistema começa a ser superado no Ocidente a partir do desenvolvimento, primeiro tímido e a seguir esmagador, da modernidade industrial.

c. Capitalismo industrial

A partir dos princípios do século XVIII inicia-se uma nova era de ascenso da civilização burguesa e da sua base colonial que chega ao ponto do domínio planetário máximo por volta do ano 1900. O crescimento económico, salpicado por numerosas turbulências, algumas com estancamentos ou depressões de duração variável, prolonga-se até a actualidade. E, por volta de fins do século XX, importantes rupturas anti-capitalistas (em primeiro lugar a Revolução Russa) haviam sido reabsorvidas pelo sistema. Contudo, é necessário aprofundar a análise.

Uma primeira distinção deve ser feita entre as velhas crises de subprodução que ainda se sucederam no século XVIII e as crises de sobreprodução não muito prolongadas, mas cíclicas, próprias do capitalismo industrial ascendente. Estas últimas aparecem como crises de sobre-oferta geral de mercadorias (ou procura relativa insuficiente) combinada com a baixa da taxa de lucro. Os capitalistas entram numa dinâmica onde competem uns com os outros ao mesmo tempo que travam a participação dos assalariados nos benefícios obtidos pelo incremento da sua produtividade (graças ao fluxo incessante de inovações técnicas). Precisam investir cada vez mais para sustentar seus lucros (diminui a taxa de lucro) e o grosso da população afectada pela concentração de rendimentos tem dificuldades crescentes para comprar a massa de produtos oferecidos pelo sistema económico. A crise de sobreprodução aparece como consequência de diversos factores: a sobreacumulação de capitais que engendra uma capacidade oferta que ultrapassa a procura, o subconsumo relativo ligado ao anterior, a desordem produtiva e económica em geral e o declínio da rentabilidade das actividades produtivas. A evolução negativa pode ser desacelerada ou bloqueada graças a certas iniciativas estatais (reduções fiscais, compras públicas a preço artificialmente altos, etc), uma maior exploração da periferia, e eludida por alguns capitalistas através do canibalismo financeiro, assim como o subconsumo relativo pode ter paliativos por meio de créditos, pressões consumistas, etc. Mas, finalmente, o peso das grandes tendências acaba por se impor, provocando a crise e com ela deflação, desocupação, encerramento de empresas, etc. Até que o desastre produza uma baixa decisiva nos salários e vazios significativos de oferta, então o investimento produtivos encontra espaços de alta rentabilidade, pode incrementar o empregado de assalariados (baratos) e vender para mercados vacantes; o ciclo económico recomeça. Ainda que, como demonstraram Marx e Engels ao descrever as crises do século XIX e sua reprodução futura, não se trate de simples repetições e sim de uma sucessão de ciclos cada vez mais degradados. Isto só pode ser entendido a partir de uma visão histórica, superando as modelações ahistóricas da teoria económica. Como assinala Marx: "Até 1825... pode-se dizer que as necessidades do consumo geral marchavam mais rapidamente que a produção, e que o desenvolvimento da maquinaria era a consequência forçosa das necessidades do mercado... (na Inglaterra) a indústria acabava de sair da sua infância, como o prova o facto de que é só com a crise de 1825 que ela inaugura o ciclo periódico da vida moderna. E foi só em 1830 que se produziu uma crise realmente característica (de sobreprodução" (Marx-Engels, 1978).

Abriu-se então um período de crises decenais de crescimento que mascaram o ascenso do capitalismo industrial inglês, mas em 1870 Engels afirmava que pelo menos para a velha Inglaterra essas regularidades pertenciam ao passado: "A supressão do monopólio inglês sobre o mercado mundial e os novos meios de comunicação contribuíram para liquidar os ciclos decenais da crise industrial" prognosticando desde então a tendência para um encurtamento do ciclo até chegar assintoticamente a uma crise crónica, uma super-crise muito provavelmente acompanhada por guerras, antecipando o desastre de 1914-18 (ibid). Mas antes desse momento o capitalismo exacerbou sua pressão expoliadora, engendrando deformações parasitárias-financeiras que foram estendendo sua dominação ao conjunto do sistema, incluindo o Estado, abrindo a era do imperialismo contemporâneo, que Bucarin definirá mais tarde como "a política do capital financeiro" (Bucarin, 1971), expressão segundo Lénin da "degeneração do capitalismo" correspondente à sua etapa histórica de decomposição parasitária (Lenin, 1960). Obviamente nenhum deles estabeleceu prazos precisos ainda que o seu optimismo os levasse muitas vezes, como é lógico, a inclinar-se por uma aceleração dos tempos.

Podemos então descrever a trajectória das crises no Ocidente ao longo do século XIX partindo de "crises mistas", muito no princípio, onde se misturaram fenómenos próprios das velhas crises de escassez ou subprodução, correspondentes às economias com predomínio agrário, com as novas crises de sobreprodução inscritas na era industrial, passando pelas crises de sobreprodução "clássicas" descritas por Marx, suas repetições decenais, até chegar nos fins desse século à emergência dominante do capital financeiro. Todo esse longo período inscreve-se numa onda mais extensa que arranca em princípios do século XVIII, marcada pela expansão imperial do Ocidente. É uma terceira arremetida depredadora depois das cruzadas no início do milénio e das conquistas coloniais dos século XV e XVI.

d. Capitalismo drogado

A partir dos fins do século XIX abre-se a era das crises do "capitalismo drogado", do imperialismo contemporâneo, "reacção da forma capitalista perante o seu envelhecimento... tentativa destinada a sustentar e acelerar de maneira artificial o processo produtivo" (Roger Dangeville em Marx-Engels, op. cit.). As referidas turbulências sucederam-se ao longo do século XX.

A primeira delas foi a super-crise de sobreprodução que derivou na Primeira Guerra Mundial, da qual emergiu uma civilização burguesa amputada pela Revolução Russa.

A segunda foi a de 1929 e sua sequela depressiva que chegou à terceira, a Segunda Guerra Mundial. Desde então o capitalismo global saiu com decisivos retrocessos territoriais que continuaram até fins dos anos 1970: a perda da Europa do Leste, da China em 1949, Cuba em 1959 até chegar ao Vietnam em meados dos anos 70... vinculada a uma onda tricontinental periférica de revoluções anti-imperialistas ameaçando deslocar o capitalismo como sistema mundial.

Aqui nos encontramos com um capitalismo caracterizado por uma esmagadora intervenção do Estado, pela extensão de grandes burocracias públicas, pela instalação da indústria militar e dos aparelhos institucionais correspondentes como muleta decisiva do sistema, a hipertrofia de produções de bens suntuários e de consumos artificiais, a sustentação estatal da procura (subvenções ao consumo, gastos de prestígio, obras públicas, gastos militares...), o manejo voluntaristas do crédito.

Essa fase decolou nos últimos anos do século XIX com uma avalanche militaristas ligada às grandes empresas do sector e às suas tramas financeiras, fenómeno que Engels destacou no fim da sua vida (Marx-Engels, op.cit.) e que explodiu na guerra de 1914-18. Ela continuou com os fascismos nos anos 1920 e 1930, mas também com o New Deal nos Estados Unidos... e com a Segunda Guerra Mundial.

Depois de 1945 consolidou-se com o mega remendo keynesiano que estabilizou o Ocidente, permitindo-lhe integrar as suas classes baixas e assegurar pouco mais de duas décadas de crescimento sustentado.

Pode ser útil destacar quatro fenómenos que, sob diversos envoltórios ideológicos e políticos, atravessaram o período (entre fins do século XIX e princípios dos anos 1970).

Primeiro, a ideia de que as crises capitalistas podiam ser domesticadas e inclusive anuladas graças à aplicação de doses variáveis de voluntarismo estatal. Foi uma convicção forte nos delírios fascistas, mas também o foi depois de 1945 durante a prosperidade keynesiana. A crise iniciada em fins do anos 1960 e que explodiu incontrolável em 1973-74 esmagou a referida ilusão.

Segundo, o ascenso do capital financeiro como centro dominante do mundo burguês até chegar à hegemonia absoluta a partir dos finais dos anos 1970. Na sua origem o fenómeno foi descrito, entre outros, por Hilferding, Lénin, Bucarin, mas na referida época e até muito depois (pelo menos até os anos 1960) essa dominação económica crescente teve de coexistir com a hegemonia cultural do produtivismo, a legitimidade burguesa encarnava-se na figura da empresa produtiva, nos seus gerentes e engenheiros industriais. Tudo mudou a chegada do neoliberalismo, os engenheiros industriais foram ofuscados pelo ascenso dos engenheiros financeiros, os capitalistas inovadores produtivos foram deslocados do altar da cultura burguesa pelos especuladores financeiros, os Henri Ford pelos George Soros. A dominação financeira discreta tornou-se hegemonia civilizacional do parasitismo.

Terceiro, a persistência e expansão permanente no longo prazo dos complexos económico-militares (indústrias, sistemas de espionagem, burocracias militares, camarilhas políticas e financeiras, etc). A expectativa da sua redução após a primeira guerra mundial foi rapidamente descartada, o mesmo aconteceu depois de 1945 e do fim da guerra fria.

Quarto, a combinação perversa do retrocesso territorial do capitalismo (entre a primeira guerra mundial e fins dos anos 1970) com a reprodução da sua hegemonia cultural planetária. As rupturas anti-capitalistas dessa época foram, do ponto de vista ideológico, rupturas a meias, híbridos culturais, prisioneiras dos mitos da revolução tecnológica ocidental (subestimando seu peso cultural capitalista), da eficácia do novo estado burguês do século XX, do capitalismo de estado, da planificação autoritária, das formas militarizadas de organização, do modelo de consumo ocidental, da ideologia do progresso. A tragédia desse período foi protagonizada por tentativas heróicas de construção de um mundo novo, socialista, que chocavam com gigantescas barreiras civilizacionais que as impediam de desenvolver plenamente uma cultura superadora do desenvolvimento e do subdesenvolvimento burguês. O que deu lugar a degenerações monstruosas como a do estalinismo cujo pano de fundo foi o fracasso da Revolução Russa, deglutida pelo aparelho burocrático, herança do passado czarista (forma específica do capitalismo periférico, subdesenvolvido) mas recomposto ao consolidar-se a União Soviética, modernizado segundo as técnicas autoritárias (ocidentais) mais avançadas da época [3]

Com as revoluções e reformas nacionalistas da periferia a meio caminho entre a imitação dos êxitos idealizados das transformações keynesianas nos países centrais e os híbridos socialistas (em primeiro lugar a URSS) o resultado foi semelhante.

Em síntese, o retrocesso do capitalismo mundial foi compensado, amortecido por um resseguro, uma reserva descomunal de poder, nutrida pela super-acumulação histórica de riquezas e de desenvolvimento cultural, o que lhe permitiu bloquear as rupturas periféricas (anti-capitalistas e nacionalistas) e também as que emergiram no seu próprio seio. Mas o declínio seguiu o seu curso, atravessando crises de diferente envergadura, prosseguindo a mutação parasitária do sistema.

3. A crise actual

A última grande onda de prosperidade do capitalismo conduziu, em fins dos anos 1960, a uma acumulação de desequilíbrios que foram forjando as condições de uma crise geral de sobre-produção. Tal como em outras ocasiões esta não se restringia à esfera económica pois abrangia o conjunto da reprodução social, enquanto emergiam as tensões monetárias, os desajustes comerciais, as aventuras militaristas (Vietnam), explodiram em 1968 inesperadas rupturas políticas nos países centrais. A Europa viu-se sacudida por uma série de rebeliões que estabeleceram um corte cultural profundo que marcava o fim do optimismo burguês, do renascimento das ilusões do progresso indefinido.

Chegou a seguir a crise monetária de 1971 e finalmente a disparada de preços do petróleo de 1973-74. Esta última foi o detonador da crise mundial. Que não se exprimiu sob o aspecto deflacionista convencional e sim como uma combinação inovadora de estancamento (até chegar à recessão) e inflação.

A outra "novidade" foi a natureza do "detonador". A alta do preço do petróleo levou nessa altura Le Roy Ladurie a assinalar que não se tratava de uma crise tradicional de sobreprodução e sim de uma "crise mista" de sobreprodução, principalmente industrial, e de subprodução, de escassez de matéria-prima energética (Le Roy Laduri, op.cit). Mandel respondeu acertadamente a este tipo de argumentações assinalando que não era a primeira vez que a escassez de uma matéria-prima cumpria essa função; a crise de 1866 por exemplo foi provocada pela penúria de algodão devida à guerra de secessão nos Estados Unidos (Mandel E., op. cit). Evidentemente não é o tipo de detonador o que define a dinâmica da crise ainda que não se tenha tratado de um factor conjuntural, de uma penúria acidental ou reversível no âmbito histórico capitalista e sim de um fenómeno que desde princípios dos anos 1970 foi emergindo de maneira irresistível como parte de um processo mais amplo de destruição de recursos naturais. Esta subestimação permitiu a Mandel explicar a referida crise sem se afastar do esquema marxista convencional, deixando de lado uma avaliação civilizacional de maior alcance. A escassez de matéria-prima energética (petróleo) pôde ser amenizada e inclusive revertida a médio prazo (poupanças de energia, substituições parciais) mas acabou por impor-se a longo prazo.

Não se tratava do retorno ao mundo dos princípios do século XIX e sim de um fenómeno ao mesmo tempo "novo" (do ponto de vista do capitalismo) mas que se entrelaçava inesperadamente com crises antigas, muitas delas civilizatórias.

Os Estados Unidos haviam chegado em princípios dos anos 1970 ao zenit da sua produção de petróleo. A partir dali a mesma desceu de maneira irresistível. Mas foi em meados dos 1980 que a tendência se acelerou; entre 1986 e 2004 a extracção caiu cerca de uns 40%. Um de cada quatro barris vendidos no mercado internacional é, no princípio de 2005, comprado pelos Estados, que representa só 9% da produção mundial de petróleo apesar de consumir 25% da mesma. A isto acrescenta-se a União Europeia que importa 80% do petróleo que consome, ao passo que o Japão compra no exterior quase 100% do seu consumo. Se somarmos as três potências teremos 12% da produção mundial mas 50% do consumo e 62% das importações internacionais (Beinstein J., 2004).

O declínio petroleiro estadunidense foi prognosticado por King Hubbert nos anos 1950 por meio de um modelo matemático que foi a seguir aplicado por destacados peritos à produção global, chegando à conclusão de que o planeta alcançaria o ponto de máxima produção de petróleo entre 2008 e 2012. Entretanto, novas avaliações levaram muitos deles a aproximar a data para 2007 e inclusive 2006.

Actualmente, à pressão sobre os recursos exercida pelas três potências mencionadas acrescenta-se a procura adicional (em expansão explosiva)da China. O resultado em 2004 foi uma forte elevação do preço do petróleo. A esta escassez no prazo curto-médio é necessário somar outras menos próximas, como a dos recursos hídricos e a das terras férteis, sobretudo em extensas áreas da periferia onde a aplicação de tecnologias avançadas vai degradando esse recursos natural (exemplo: as técnicas de "semeadura directa" associadas ao emprego de agroquímicos depredadores na produção de soja ou milho transgénicos impostos por multinacionais do sector como a firma Monsanto).

Uma conclusão teórica importante é que o modelo marxista convencional de crise de sobreprodução é ao mesmo tempo um instrumento indispensável mas ao mesmo tempo insuficiente para compreender a crise iniciada em fins dos anos 1960. Esta crise mista de sobreprodução e subprodução (de matérias-primas devido ao esgotamento de recursos naturais) surge então como um resultado muito original da sucessão de crises capitalistas de sobreprodução mas com vínculos, similitudes históricas com crises civilizatórias anteriores ao capitalismo. Porque o que se trata, visto no longo prazo, é de um fenómeno de rigidez técnica (ou melhor, tecnológica, nesta era de fusão entre ciência e indústria) que bloqueia mudanças em métodos de produção essenciais (de produtos energéticos e outros) provocando esgotamento de recursos naturais. A referida rigidez não é um obstáculo superável no âmbito civilizacional existente e sim um dos resultados centrais de um processo cultural prolongado, de um modo de produção (capitalista, no presente caso) que se instalou e consolidou num longo período histórico até adquirir dimensão planetária. Poderia argumentar-se que actuais e futuras revoluções tecnológicas acabarão por solucionar esses problemas, mas essa é uma resposta limitada (prisioneira de abstracções tecnologistas), devem ser considerados os custos e tempos de reconversão, e sua compatibilidade com a lógica da rentabilidade capitalista, pressionada agora como nunca pelo comportamento curtoprazista próprio da hegemonia financeira.

Ao desencadear-se a crise, entre 1868 e 1974, exacerbaram-se as tendências à concentração de empresas e de rendimentos entre centro e periferia no interior de ambos os subsistemas, o que produziu crescentes massas de marginais, acentuando uma crise de sobreprodução (e subconsumo relativo global) que se tornou crónica, com agravamentos e alívios efémeros. A taxa de crescimento da economia mundial foi decrescendo gradualmente desde então sob a pressão declinante dos países centrais. O estancamento japonês desde os princípios dos 1990 acentuou a tendência, a desaceleração alemã foi menos pronunciada devido aos benefícios passageiros da anexação da Alemanha do Leste e a depredação financeira dos ex-países socialistas da Europa e da URSS. E a dos Estados Unidos menos ainda, pelo menos até agora (princípios de 2005), graças às sucessivas borbulhas especulativas que inflaram a sua procura absorvendo porções crescentes da poupança global.

Arrefecimento da produção e da procura que engendrou um círculo vicioso financeiro cada vez mais ingovernável. Os estados dos países ricos a sustentarem suas procuras internas com subsídios, isenções fiscais, gastos militares e outros meios, para os quais recorrem ao endividamento. Empresas a colocarem excedentes nessas dívidas e em papeis de outras empresas que absorvem recursos para investi-los nas suas guerras tecnológicas e comerciais cada vez mais custosas. O que cria novos excedentes orientados também para a rapina na periferia e finalmente para negócios ilegais, o que por sua vez gera mais excedentes. Borbulhas financeiras que estalam ou desincham uma após a outra para reconstituir-se em países e rubricas variáveis. A crise financeira japonesa dos princípios dos anos 90, seguida pouco depois pela do México, em 1997 pela da Ásia do Leste, da Rússia em 1998, até chegar ao esvaziamento da super-borbulha bursátil nos Estados Unidos em princípios do presente milénio sucedida nesse mesmo país por uma nova borbulha especulativa muito maior que a anterior combinada com um paroxismo militarista. O que precipita a super-potência na sobre-extensão estratégica: é obrigada pela sua lógica imperial a ampliar o seu desperdício militar, com consequências desastrosas para as suas finanças públicas.

Um conceito muito útil para descrever este panorama é o de "capitalismo senil", que pode ser associado a visões parecidas correspondentes a outras crises de civilização. São Cipriano, por exemplo, em meados do século III referiu-se ao envelhecimento do mundo romano como causa da sua decadência (Fernandez Urbiña J., op. Cit.). Por volta de fins dos anos 1970 Roger Dangeville foi o pioneiro a instalar o conceito, antecipando assim o desenvolvimento futuro da crise que então começava (Marx-Engels. op. cit.).

Para Dangeville estava a iniciar-se um processo de crise de sobreprodução crónica, com estalidos controlados, sem as quedas espectaculares das grandes crises capitalistas anteriores (pelo menos num primeiro e longo percurso). Mas sem as recuperações vigorosas que se sucederam por exemplo no século XIX (sequência de "crise de crescimento", na era do "capitalismo senil" pelo contrário cada turbulência importante (entendida como uma única super crise, crónica, de longa duração) não é sucedida por uma nova expansão durável e sim por sobrevivências praguejadas de deteriorações, de perdas de vitalidade.

É possível assinalar indicadores evidentes da senilidade do mundo burguês, dentre outros: primeiro, a tendência de longo prazo, persistente (mais de três décadas até agora) à desaceleração do crescimento económico global. Todos os "milagres" anteriores que prometiam contrapor-se a essa tendência esfumaram-se um após o outro (Japão em 1990, os tigres asiáticos em 1996) e o actual, a China, esta tão atado como os seus antecessores aos avatares da euforia parasitário-consumista dos Estados Unidos, o que não lhe augura um futuro brilhante. A perda de dinamismo aparece como um fenómeno irresistível.

Segundo, a hipertrofia (hegemónica) financeira global, o parasitismo já fez metástases, invadindo (controlando) a totalidade do sistema mundial.

Terceiro, a evidência de rendimentos produtivos decrescentes da revolução tecnológica que, submetida à dinâmica do capitalismo parasitário, vai-se convertendo num factor de destruição líquida de forças produtivas. Já mencionei o caso dos transgénicos, poderíamos acrescentar o da dupla informática-financiarização, destruidora maciça de empregos, de economias nacionais na periferia.

Quarto, a decadência do estado burguês, peça mestra da civilização burguesa. Que se exprime no desengonzamento estatal de boa parte da periferia, no apodrecimento institucional norte-americano, na crescente crise de representatividade-legitimidade nos estados da União Europeia, etc. Os neoliberais dos anos 1990 costumavam alegrar-se diante desse facto, muitos deles vaticinavam a emergência de uma espécie de "autoridade global transnacional" (amálgama de FMI, Banco Mundial, OMC, Nações Unidas...). Foi uma fantasia efémera, o aprofundamento da crise degradou e desacreditou essas organizações, as necessidades imperiais dos Estados Unidos (empregando brutais iniciativas militares e financeiras) contribuiu decisivamente para isso.

Quinto, a ultraprivatização da riqueza que se manifesta como desprezo da burguesia imperial (mas também das periféricas) para com a função pública. Ou seja, o desinteresse das classes dominantes pela integração das classes inferiores através do Estado. O apartheid social é uma das suas consequências.

Sexto, a desintegração social, marginalização em ascenso de grandes massas humanas.

Sétimo, ligado ao anterior, a sub-utilização e destruição de forças produtivas (no sentido amplo do termo) em escala global.

Oitavo, a inutilidade prática crescente dos refinados e caríssimos aparelhos militares, cujo gigantismo esmagador contrapõe-se à sua incapacidade para ganhar guerras coloniais como a do Iraque.

É necessário constatar que a longa crise actual, motorizada por uma sobredose de parasitismo financeiro, sem reconversões produtivas à vista, desintegrando de modo permanente grandes massas de população, apontando para o esgotamento de recursos naturais, rompeu numerosas rotinas características do velho capitalismo. Dentre elas a repetição de grandes ciclos de depressão-expansão como as ondas longas de Kondratieff. Nos fins do século XIX Engels sustentava que os ciclos decenais que a economia inglesa havia atravessado começavam a fazer parte do passado (Marx-Engels, op.cit.). Agora a experiência recente mostra-nos que a dinâmica dos ciclos de Kondratieff, de aproximadamente cinquenta anos (um quarto de século de ascenso e um quarto de século de descenso) a partir da "crise" da mudança de fase (1968-74) converteu-se desde há mais de três décadas em "crise crónica" (em breve cumprirá quarenta anos de idade). Sua duração supera amplamente todos os declínios capitalistas anteriores (séculos XIX e XX) e qualquer avaliação minimamente rigorosa concluiria com o prognóstico de que esta onda descendente durará facilmente mais de meio século, o equivalente a mais de um ciclo completo de Kondratieff (com o seu ascenso e descenso). Aqueles (como os neoliberais, neokeynesianos, etc) que desde fins dos anos 1990 esperam confiantes o "iminente" recomeço de uma nova era de prosperidade capitalista deverão transformar a sua impaciência em resignação. O mundo mudou. A profundidade da decadência não admite novos remendos (keynesianos ou outros), admitirá sim, cada vez mais, mudanças revolucionárias integrais, tentativas de abolição (superação) do quadro civilizacional actual, da civilização burguesa que depois do seu percurso milenar e de haver chegado à hegemonia planetária tornou-se antagónica às grandes forças humanas que ela própria desencadeou. O pós-capitalismo surge agora, muito mais que nos princípios do século XX (quando começou a primeira etapa da decadência do sistema) como uma necessidade profunda do género humano.
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Notas:
(1) A prosperidade agrícola podia eventualmente ser o resultado da recuperação de uma crise anterior, da incorporação de novas terras férteis, da realização de grandes obras de regadio e em certos casos impulsionada por rapinas de outras populações sob a forma de tributos, trabalho escravo, etc.

(2) A fase descendente podia ser travada pela obtenção de riquezas provenientes de rapinas externas ou então pela introdução de melhorias técnicas.

(3) O ascenso de Stalin ao poder deve ser interpretado não como a vitória do "atraso asiático" e sim como a reinstalação de formas despóticas de modernização, seguindo e radicalizando modelos organizativos autoritários provenientes do Ocidente e reconectando com a trajectória traçada pelos "modernizadores" Ivan o Terrível e Pedro o Grande.

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Bibliografia

- Beinstein Jorge; "Estados Unidos en el centro de la crisis mundial", Enfoques Alternativos nº 27, Buenos Aires, noviembre 2004.
- Bujarin Nicolai I., "El imperialismo y la economía mundial", Cuadernos de Pasado y Presente, Córdoba, Argentina, 1971.
- Chaunu Pierre, "Histoire et décadence", Perrin, Paris, 1981.
- Duclos Denis, "Étrange ressemblance avec la fin de l'empire romain. La cosmocratie, nouvelle classe planétaire". Le Monde Diplomatique, París, Août, 1997.
- Fernandez Urbiña J., "La crisis del siglo III y el fin del mundo antiguo", Akal/Universitaria, Madrid, 1982.
- Fukuyama Francis, "El fin de la historia?", Doxa nº1, Buenos Aires, 1990.
- Gimpel Jean, "La revolution industrielle au Moyen Age", Seuil, 1985.
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- Hobsbawm E. J.; "La crisis del siglo XVII" en "Crisis en Europa, 1560-1660", Compilación de Trevor Aston, Alianza Universidad, Madrid, 1983.
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- Le Roy Ladurie Emmanuel, "La crise et le historien" en "Le Concept de crise", Editions du Seuil, Paris. 1976.
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- Marchal J.M; "Expansion et récession. Iniciation aux mécanismes généraux de l'économie", Cujas, París, 1963.
- Marx-Engels, "La crise", Recopilación y comentarios de Roger Dangeville, 10/18- Union Générale d'Editions, París, 1978.
- Rostovtzeff M. Invanovich, "Historia social y económica del Imperio Romano", Espasa-Calpe, Madrid, 1973.
- Trevor-Roper H. R., "La crisis general del siglo XVII" en "Crisis en Europa, 1560-1660", Compilación de Trevor Aston, Alianza Universidad, Madrid, 1983.

[*] jorgebeinstein@yahoo.com

Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/.

Rapina em tempos de barbárie!

A Etiópia está à venda

Imaginem terrenos férteis com uma área semelhante à do distrito de Lisboa arrendada durante 50 anos, por menos de 700 euros/mês. O negócio está sendo oferecido pelo governo da Etiópia. Apesar da Etiópia ser um dos países com maiores problemas de subnutrição do planeta – recebeu no ano passado 700 mil toneladas de alimentos como ajuda humanitária – os investidores vão produzir colheitas de alto valor como soja, óleo de palma, algodão e açúcar para exportação ao invés de cereais e outros vegetais para consumo das populações etíopes. O artigo é de Nelson Peralta.

Imaginem terrenos férteis com uma área semelhante à do distrito de Lisboa arrendada durante 50 anos, por menos de 700 euros/mês. Não é preciso imaginar. É apenas mais um negócio oferecido pelo governo da Etiópia. No total, a oferta de terrenos nestas condições equivale já à área dos quatro maiores distritos portugueses: Beja, Évora, Santarém e Castelo Branco. Cerca de 35% da área continental de Portugal, três milhões de hectares, um quadrado com 173 km de lado.

Ao mesmo tempo, o governo etíope tem em curso um programa de relocalização das populações dessas áreas. O argumento é o de agrupamento em povoações maiores para assim assegurar o acesso ao abastecimento de água, à rede viária, a escolas, hospitais, transportes, etc.. A simultaneidade entre os dois acontecimentos é mera coincidência, dizem os responsáveis. A verdade é que a promessa de melhores infra-estruturas e maior qualidade de vida não tem passado disso mesmo, uma promessa, e o clima de medo e opressão está instalado. Só durante este ano, mais de 15 mil pessoas serão relocalizadas.

Apesar da Etiópia ser um dos países com maiores problemas de subnutrição do planeta – recebeu no ano passado 700 mil toneladas de alimentos como ajuda humanitária – os investidores vão produzir colheitas de alto valor como soja, óleo de palma, algodão e açúcar para exportação ao invés de cereais e outros vegetais para consumo das populações etíopes. Aos impactos sociais junta-se a devastação ambiental extrema: os terrenos são queimados, as florestas abatidas e as zonas úmidas drenadas. Uma reconfiguração do ecossistema em grande escala.

Estes fatos foram revelados por uma reportagem do The Guardian. O governo etíope defende esta industrialização em larga escala como necessidade e única solução para o desenvolvimento. Curiosamente, no início deste mês, um relatório das Nações Unidas mostrou que a agricultura ecológica, desenvolvida por pequenos agricultores e sem se basear em químicos e pesticidas, pode dobrar a produção alimentar em África nos próximos dez anos.

A mega-exporação de que falava no início, com o tamanho do distrito de Lisboa, terá 60 mil trabalhadores que vão ganhar menos de um dólar por dia. A sua missão será trabalhar as terras que sempre foram suas e para as quais não podem voltar com pleno direito. O governo garante ainda aos investidores vários incentivos fiscais e estradas construídas com dinheiro públicos.

O benefício para a população etíope é imperceptível. Ficam sem os alimentos e sem as terras para a produzir. O futuro fica comprometido. O poder do Estado e o seu aparelho repressivo garantem a venda a retalho do país e colocam a economia ao serviço da extorsão. Tudo à custa da segurança alimentar e da escravização “moderna” da sua população. Os poucos que lucram com o negócio - o fundo de pensões do Reino Unido, outros fundos financeiros e os tubarões internacionais do ramo - agradecem e mantém a sua aura de responsabilidade social.

(*) Nelson Peralta é biólogo, dirigente do Bloco de Esquerda, de Portugal.

In: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17608 

Novo Código dos Latifundiários, dos Lobistas, dos Comodities e do Capital Autofágico

Novo Código Florestal é mais um capítulo do histórico domínio do Brasil pelo agronegócio.

Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação    Ter, 31 de Maio de 2011 22:37

Após meses de calorosos debates e pesados lobbies, a Câmara dos Deputados aprovou o substitutivo do atual Código Florestal, projeto apresentado pelo deputado do PC do B Aldo Rebelo, em nome de toda a bancada dos empresários ruralistas que ocupam o Congresso. Para analisar a pior derrota do núcleo duro governista até o momento, refratário ao novo Código, o Correio da Cidadania conversou com o geógrafo da USP Ariovaldo Umbelino.

 Escaldado com os projetos anti-ambientais, naquilo que já cunhou de "agrobanditismo", Umbelino não se mostrou surpreso com mais essa vitória ruralista, na esteira das MPs 422 e 458, além do programa Terra Legal. São todos estes, a seu ver, contribuintes inequívocos para o aumento da violência no campo, já registrado nas estatísticas de 2009 para 2010 e marcado a fogo com o assassinato de um casal de extrativistas paraenses na véspera da votação do novo Código Florestal.
 O professor da USP, atualmente em visita na Universidade Federal de Tocantins, critica todos os pontos modificados ao interesse dos latifundiários, mas destaca como mais temerárias a anistia a desmatamentos já realizados e a redução de Áreas de Proteção Permanente, as APPs. Além da diminuição da exigência de preservação de matas ciliares, quando estudos já apontam que isso leva ao ressecamento de nascentes de rios, como se verifica no São Francisco.

Sobre estados e municípios tomarem para si a atribuição federal de definir políticas ambientais de uso e concessão de solo, considera ser o ponto mais fácil de derrubar no Supremo. De toda forma, Umbelino crê que, com ou sem o novo Código, o desmatamento continuará a todo vapor, "porque não tem fiscalização e governo que façam cumprir as infrações à lei no Brasil" e "a maior parte do Congresso é favorável à desregulamentação geral do que o agronegócio entende como obstáculos". Exatamente por isso, não acredita que Dilma conseguirá impor o veto ao projeto, conforme declarou.
 A entrevista com Ariovaldo Umbelino pode ser lida em sua íntegra a seguir. 

 Correio da Cidadania: Como o senhor analisa a aprovação na Câmara dos Deputados do novo Código Florestal, apresentado por Aldo Rebelo, com o afrouxamento de exigências e regras estabelecidas pelo Código anterior?

Ariovaldo Umbelino: A aprovação do Código Florestal com as modificações introduzidas pelo Aldo Rebelo vai na mesma direção de um conjunto de legislações que foram sendo afrouxadas, sob o objetivo fundamental de liberação integral para a ação do agronegócio em território brasileiro. Tais ações começaram com a lei que permitiu a introdução dos transgênicos, passaram pela permissão à retirada de madeira de dentro das florestas nacionais e também pelas MPs 422 e 458, que permitiram a legalização da grilagem na Amazônia legal.
 Portanto, o projeto desse Código Florestal faz parte da história que marcou o governo do presidente Luiz Inácio e agora se estende, no sentido de desregulamentar toda e qualquer legislação que impeça a ação do agronegócio no Brasil. É o principal ponto.
E evidentemente Aldo Rebelo prestou mais um desserviço à sociedade brasileira. Primeiro, por fazer um substitutivo já ruim, e, em segundo lugar, por abrir a possibilidade de aprovação das modificações introduzidas no plenário. Elas tornaram o projeto, do ponto de vista da proteção ambiental, péssimo e infrator de todos os princípios de preservação, ainda introduzindo artigos que permitirão a imposição da lógica da terra arrasada ao meio ambiente brasileiro.

 Correio da Cidadania: Com o novo Código, estados e municípios, mais vulneráveis a pressões políticas, poderão legislar sobre o uso e concessão do solo em Áreas de Proteção Permanente, uma política, dentre outras, até então sob o âmbito federal. O que pensa disto?  
Ariovaldo Umbelino: Esse talvez seja o ponto mais fácil de derrubar no Supremo. A Constituição atribui à União o poder de legislar sobre o meio ambiente. É um item que começa a abrir precedentes, mas imagino que, mesmo aprovado, possa ser derrubado por ação de inconstitucionalidade. Diferentemente dos outros itens, de interesse direto ao próprio Código, que pela Constituição devem ser objeto de lei. Eles também têm problemas de introdução, mas a briga é sempre imprevisível. 
De toda forma, tal medida equivale a transferir toda a legislação de terras a estados e municípios. 
Correio da Cidadania: O que é impraticável na realidade, pois, tal como você já nos disse, biomas e áreas de preservação não reconhecem limites geográficos desenhados pelo homem.  
Ariovaldo Umbelino: É como dizer que a legislação ambiental não é mais da alçada do governo federal. E assim, com uma lei, se revoga a Constituição. De qualquer maneira, ainda acho que esse ponto não é o mais complicado. O pior são as reduções nas APPs, a consolidação do estrago já feito nelas com a anistia a desmatadores.

Correio da Cidadania: A dispensa de reposição de reservas em pequenas propriedades, de até 4 módulos fiscais, não acarretará, ademais, uma avalanche de medidas para driblar a legislação, como, por exemplo, a partilha de propriedades?  
Ariovaldo Umbelino: Sobre isso, há o problema de se apresentar tal fato como reivindicação dos pequenos proprietários. Na realidade, isso não existe tão claramente como se coloca aqui no Brasil. Como exemplo, temos o setor sucroalcooleiro, cujas propriedades nunca deixaram de continuar a ser compradas, mas seus donos nunca fundiram as escrituras dos imóveis comprados, convertendo-as em uma única. Nesse setor, portanto, existe muita área considerada pequena propriedade, cuja escritura atesta ser inferior a 4 módulos fiscais. Esses proprietários também serão beneficiados, porque a rigor a propriedade é inferior ao tamanho proposto. 
Os grandes proprietários do Brasil não anexam todas as suas propriedades. Por trás da proteção aos pequenos agricultores, portanto, protegem-se os grandes. Em Ribeirão Preto e região, há até unidade industrial de usina de açúcar em cima de APP. Na verdade, é uma proteção aos grandes, a todos os setores do agronegócio. 

Correio da Cidadania: Haveria como averiguar efetivamente onde estão os agricultores que são realmente familiares, que são aqueles que deveriam de fato ficar isentos dessa reposição de reservas?  
Ariovaldo Umbelino: É claro. Na verdade, a permissão deveria ser competência do IBAMA, via utilização de imagens de satélite do INPE, para verificar onde há de fato uma agricultura familiar forte. Mas deveria ser estudado caso a caso, e não fazer uma legislação que afrouxa tudo genericamente.

Correio da Cidadania: Vivemos uma época com a ocorrência inegável de catástrofes produzidas por eventos da natureza, com destaque para a mais recente tragédia, a da Região Serrana do Rio de Janeiro. Além dos afrouxamentos já citados, reduzir a área de proteção nas matas ciliares e em margens de rio poderá agravar este quadro com grande intensidade?  
Ariovaldo Umbelino: No caso do Rio de Janeiro, deve-se ver de forma distinta. Houve deslizamentos em áreas de intervenção humana, assim como em áreas sem intervenção. Um ano antes em Angra foi a mesma coisa. Na realidade, a proteção de tais áreas é necessária porque por natureza são áreas instáveis. Sobretudo nos biomas onde chove acentuadamente, como é o caso dessa região do Rio de Janeiro. É bom lembrar que na década de 60 o mesmo fenômeno ocorreu em Caraguatatuba. O desmatamento só agrava, mas vale dizer que mesmo assim essas áreas são instáveis. 
Já a proteção das matas ciliares tem fundamentalmente a ver com a proteção das nascentes. Há estudos em Minas Gerais dando conta de que mais de 3000 nascentes do São Francisco já secaram em função do desmatamento das matas ciliares. Já há estudos no Brasil comprovando que o desmatamento da mata ciliar pode levar ao ressecamento das nascentes.

Correio da Cidadania: Quanto à anistia que se pretende dar às infrações ambientais cometidas até 2008, desde que reconhecidos os crimes pelos infratores, não vai abrir um sério precedente para o incremento do desmatamento em estados tradicionalmente agressores da preservação ambiental?  
Ariovaldo Umbelino: Bom, é claro que devemos classificar esta medida como gravíssima, não há como não usar essa palavra. Mas no Brasil nenhum infrator é multado! E quando o é, o Estado não cobra a multa. 
Por exemplo: os proprietários que não pagaram o Imposto Territorial Rural nunca foram multados, processados. Se lembrarmos do Raul Jungmann, no governo FHC, quando assumiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a primeira modificação legal que ele fez foi introduzir o imposto territorial progressivo. Ou seja, se o dono não paga o imposto, ele aumenta no ano seguinte, progressivamente, até que um dia a multa supere o próprio valor do imóvel. Mas nunca alguém foi processado.
O Brasil tem leis boas, o problema sempre foi, infelizmente, o cumprimento, a execução do Estado para que elas se cumpram de fato.

Correio da Cidadania: Mas isso não pode se agravar diante de tamanha liberalização?  
Ariovaldo Umbelino: A anistia é um ato declarado disso tudo. Mas, quando o presidente Luiz Inácio fez o decreto que legalizou os transgênicos, também perdoou quem tinha importado e usado ilegalmente sementes transgênicas até então. A história brasileira é de condescendência com as ações ilegais. 
Se eu infrinjo a lei, sou multado e anistiado, posso continuar infringindo a lei. O ponto é que, com ou sem esse novo Código Florestal, aconteça o que acontecer, o desmatamento vai continuar, porque não há fiscalização e não tem governo que faça cumprir as ações contra a infração da lei. 
E nesta questão se inclui ainda o Judiciário. Sabemos que o Judiciário não julga nada ou julga a favor dos grandes. Como exemplo, lembro a Cosan, que foi incluída na lista suja do trabalho escravo. No dia seguinte, um juiz foi lá e deu liminar para que o nome da empresa fosse retirado da lista suja. A justiça brasileira também nunca garantiu o cumprimento e o respeito às leis. 

Correio da Cidadania: O que o senhor diria a respeito dos argumentos de cunho nacionalista proferidos por Aldo Rebelo e outros defensores da proposta aprovada?

Ariovaldo Umbelino: Quem fez o texto do substitutivo ao Código Florestal apresentado por ele foi uma advogada da CNA, Confederação Nacional da Agricultura, informação conhecida pelo Brasil todo. Em segundo lugar, se formos olhar a lista dos seus doadores de campanha, veremos que constam as principais empresas do agronegócio. 
Portanto, ele é um vendido. Como diria Brizola, "mais um vendilhão da pátria". 
Correio da Cidadania: O que pensa do assassinato do casal José Claudio e Maria, militantes do campo, às vésperas da votação do novo Código? Podemos esperar por tempos ainda mais violentos no campo, com a aprovação desse Código Florestal?  
Ariovaldo Umbelino: Sim, podemos. Se olharmos os dados da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, de assassinatos no campo no ano passado e também em 2009 verificamos que há aumento no número de crimes. Quer dizer, entre 2009 e 2010 já ocorreu aumento dos assassinatos, após as MPs 422 (regulariza propriedades de até 1500 hectares na Amazônia Legal) e 458 (visa acelerar regularização de tais propriedades, apelidada de "MP da Legalização da Grilagem", por igualar posseiros e grileiros) e o programa Terra Legal (regulariza posses na Amazônia sem garantir fiscalização à propriedade, a fim de comprovar as dimensões declaradas, entre outras irregularidades abrigadas também nas MPs citadas). 
A realidade, portanto, é que já houve conseqüências, e a aprovação desse novo Código, evidentemente, só vai aumentar a violência do campo. 

Correio da Cidadania: O que essa vitória da bancada parlamentar dominada pelos empresários do latifúndio representa do atual estado de nossa política parlamentar e institucional?  
Ariovaldo Umbelino: Primeiro, devemos lembrar a realidade cruel: a maior parte dos nossos representantes no Congresso é favorável a essa desregulamentação geral de leis que o agronegócio entende como obstáculos restritivos. Mas não é só a bancada ruralista a responsável. O Aldo Rebelo não precisava ter feito o substitutivo. Já foi líder de bancada do governo, presidente da Câmara... Podia ter feito diferente. Aliás, a ação dele nesse episódio e na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, mostra que de comunista ele não tem mais nada. 
A verdade é que a maior parte de nossos parlamentares tem compromisso com o agronegócio. E estão fazendo valer o poder que têm, votando favoravelmente ao agronegócio, inclusive os partidos de esquerda, que entendem que esse estilo de agricultura e o capitalismo devem continuar se expandindo, pois geram empregos, divisas pra balança comercial... A mesma concepção que vem desde o período colonial e que faz do Brasil uma economia primário-exportadora.

Correio da Cidadania: Acredita que a reforma do Código Florestal possa ser barrada, ou minimamente alterada, no Senado? Em um momento em que o governo está refém de uma crise política, novamente protagonizada por Palocci, terá a presidente Dilma condições de reverter os pontos mais lesivos?  
Ariovaldo Umbelino: Eu acho que não. Acho que o Senado oferece o risco de piorar ainda mais a situação. E se a Dilma for lá e vetar, como já está declarando, o que vai acontecer é que vão derrubar o veto. E do ponto de vista político o estrago será maior. O caso do Palocci só torna o jogo político mais agudo. O governo do Luiz Inácio também foi refém do Congresso durante oito anos. Esse não será diferente. 
Correio da Cidadania: O que esperar do governo Dilma na área ambiental e no que se refere à política agrária?  
Ariovaldo Umbelino: Até o momento, ela não tornou públicos os seus planos. Na área agrária, só conheço o primeiro documento que circulou, do MDA, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que simplesmente abandona de forma definitiva a reforma agrária como política pública no Brasil. Nos outros setores, o único ponto em que há algum esboço é na questão que se refere ao combate à pobreza extrema. 
Aliás, o Brasil não tem miseráveis, mas "pobres extremos". Como se não fosse a mesma coisa. E evidentemente o desejo dela de fazer algo nessa área é maior. Mas também não há plano divulgado. 

Correio da Cidadania: Mas sem uma reforma agrária autêntica, esse objetivo também fica dificultado...  
Ariovaldo Umbelino: Porém, quem colocou a questão da reforma agrária na pauta dos governos nos últimos 30 anos foram os movimentos sociais. E eles abandonaram essa bandeira. Se olharmos o abril vermelho deste ano, vamos ver que foi verde e amarelo. 

Correio da Cidadania: O que achou do papel da mídia na apresentação da discussão? 
Ariovaldo Umbelino: A mídia brasileira, sobretudo a grande mídia, comercial, sempre foi favorável ao agronegócio, isso quando não tinha – ou tem – interesses diretos no agronegócio. Pra mim, particularmente, não foi novidade alguma. Continuaram fazendo o mesmo também em outros temas, como mostra seu combate feroz aos movimentos sociais. É uma mídia inteiramente comprometida com o agronegócio.

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania. 

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Quarta Declaração da Selva Lacandona

Quarta Declaração da Selva Lacandona

Ao povo do México
Aos povos e governos do mundo
Irmãos:
“Hoje dizemos: aqui estamos. Somos a dignidade rebelde, o coração esquecido da Pátria!
A flor da palavra não morrerá. Poderá morrer o rosto oculto de quem hoje a nomeia, mas a palavra que veio desde o fundo da história e da terra já não poderá ser arrancada pela soberba do poder.
Nós nascemos da noite. Nela vivemos. Nela morreremos. Porém, a luz será manhã para os demais, para todos aqueles que hoje choram a noite, para quem o dia é negado, para quem a morte é uma dádiva, para a dor e a angústia. Para nós, a alegre rebeldia. Para nós o futuro negado, a dignidade insurrecta. Para nós, nada.
Nossa luta é para fazer-nos escutar, e o mau governo grita soberba e tapa com canhões os seus ouvidos.
Nossa luta é contra a fome, e o mau governo oferece balas e papel aos estômagos de nossos filhos.
Nossa luta é por uma moradia digna, e o mau governo destrói nossa casa e nossa história.
Nossa luta é pelo saber, e o mau governo reparte ignorância e desprezo.
Nossa luta é por terra, e o mau governo oferece cemitérios.
Nossa luta é por trabalho justo e digno, e o mau governo compra e vende corpos e vergonha.
Nossa luta é pela vida, e o mau governo oferece a morte como futuro.
Nossa luta é pelo respeito ao nosso direito de governar e nos governarmos, e o mau governo impõe à maioria a lei da minoria.
Nossa luta é por liberdade para o pensamento e o caminhar, e o mau governo impõe cárceres e túmulos.
Nossa luta é por justiça, e o mau governo está cheio de criminosos e assassinos.
Nossa luta é pela história, e o mau governo propõe o esquecimento.
Nossa luta é pela Pátria, e o mau governo sonha com a bandeira e a língua estrangeiras.
Nossa luta é pela paz, e o mau governo anuncia guerra e destruição.
Moradia, terra, trabalho, pão, saúde, educação, independência, democracia, liberdade, justiça e paz. Estas foram nossas bandeiras na madrugada de 1994. Estas foram as nossas demandas na longa noite dos 500 anos. Estas são hoje nossas exigências.
Nosso sangue e nossas palavras acenderam um pequeno fogo na montanha e o levamos rumo à casa do poder e do dinheiro. Irmãos e irmãs de outras raças e outras línguas, de outra cor e mesmo coração, protegeram a nossa luz e dela acenderam seus respectivos fogos.
O poderoso veio para nos apagar com o seu sopro poderoso, mas nossa luz cresceu em outras luzes. O rico sonha em apagar a primeira luz. É inútil, já existem muitas luzes e todas são primeiras.
O soberbo quer apagar uma rebeldia que sua ignorância situa no amanhecer de 1994. Porém, a rebeldia que hoje tem rosto moreno e língua verdadeira não nasceu agora. Antes falou com outras línguas e em outras terras. A rebeldia contra a injustiça caminhou em muitas montanhas e muitas histórias. Ela já falou em língua náhuatl, paipai, kiliwa, cúcapa, cochimi, kumiai, yuma, seri, chontal, chimanteco, pame, chichimeca, otomí, mazahua, matlazinca, ocuilteco, zapoteco, solteco, chatino, papabuco, mixteco, cuicateco, triqui, amuzgo, mazateco, chocho, izcateco, huave, tlapaneco, totonaca, tepehua, popoluca, mixe, zoque, huasteco, lacandón, maya, chol, tzeltal, tzotzil, tojolabal, mame, teco, ixil, aguacateco, motocintleco, chicomucelteco, kanjobal, jacalteco, quiché, cakchiquel, ketchi, pima, tepehuán, tarahumara, mayo, yaqui, cahíta, ópata, cora, huichol, purépecha e kikapú. Falou e fala o espanhol. A rebeldia não é coisa de língua, é coisa de dignidade e de seres humanos.
Por trabalhar nos matam, por viver nos matam. Não há lugar para nós no mundo do poder. Por lutar nos matarão, mas nós construiremos um mundo onde tenha lugar para todos e todos possam viver sem morte na palavra. Querem nos tirar a terra, para que o nosso passo não possa andar. Querem nos tirar a história, para que a nossa palavra morra no esquecimento. Não nos querem índios. Nos querem mortos.
Para os poderosos, o nosso silêncio era uma benção. Calando morríamos, sem palavra não existíamos. Lutamos para falar contra o esquecimento, contra a morte, pela memória e pela vida. Lutamos pelo medo de morrer a morte do esquecimento.
Falando em seu coração índio, a Pátria continua digna e com memória. [...]”

EXÉRCITO ZAPATISTA DE LIBERAÇÃO NACIONAL

Sobre pão e circo – a educação supérflua?!

Wagnervalter Dutra Júnior*


É interessante observar o custo da política de pão e circo. Tanto no primeiro caso, como no segundo, quem paga a conta? De quem é extraído a ‘mais-valia social’ para re-alimentar um sistema tão contraproducente regido pelo capital? Os custos do espetáculo servem para bancar campanhas eleitorais a despeito dos mais pobres, para em seguida permitir o ciclo do capital. Basta tomar, por exemplo, os sucessivos cortes orçamentários realizados pelo governador do Estado da Bahia no ano de 2009 e 2011. E por que não em 2010? Ano de comprar uma reeleição, e viabilizar algo que se situa bem além do Bolsa Família: o Bolsa Empreiteiro - para montar grandes circos, da Copa à Olimpíada.
Karl Marx no 18 de Brumário assevera: “Hegel observa algures que todos os grandes fatos e personagens da história [...] aparecem, por assim dizer, duas vezes. Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia e a outra como farsa [...] É precisamente nessas épocas de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce de velhice venerável e essa linguagem emprestada, representar a nova cena da história universal” (MARX, 2008, 207 – 208). Não poderia haver melhor representação do que se transformou o Partido dos Trabalhadores – ou melhor, Partido do Trabalho Abstrato. Na Bahia o carlismo foi reconvertido numa espécie de neocarlismo, com grande eficácia para construir e operar jogos políticos visando à hegemonia – tal habilidade surpreenderia até mesmo o ‘primeiro cacique’, se estivesse vivo.
            Na esteira do discurso do corte de gastos públicos, para estancar a crise, que segundo o próprio Lula da Silva era apenas uma marola, o novo cacique cabeça branca da Bahia atinge em cheio a educação. O decreto n° 12.583/2011, publicado em fevereiro, desfere um duro golpe sobre toda a educação no Estado da Bahia, e demonstra a forma como esse governo trata a educação: para ele o que importa é a educação-empreendedorista-mercadoria-fetiche (de natureza técnico-profissionalizante), expressa pelos programas enquadrados nos ditames do Banco Mundial, a exemplo do PROJOVEM. Uma espécie de adestramento pós-moderno, que transforma/transfere a formação e leitura de mundo para o caminho de volta ao parafuso dos tempos modernos de Charles Chaplin. Querem tornar real o que apontava George Orwell no livro 1984? Produzir uma espécie de novilíngua em que não caibam mais as palavras Utopia? Revolução? Socialismo? Arnaquismo? Comunismo?
            O caminho é a resistência: as Universidades Estaduais da Bahia deflagraram greve no mês de abril; estudantes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia paralisaram e protestaram contra o ato fascista do governo, antes mesmo que os docentes – negando-se a serem meros apertadores de parafusos!
            Há mais surpresas nesse caminho: muitos dos que hoje estão ‘perseguindo’ o movimento docente grevista, tentando criminalizar, marginalizar, eliminar o direito à mobilização e à greve, desrespeitando direitos adquiridos e assegurados por lei, foram os professores que um dia nos ensinaram a importância da crítica à sociedade burguesa: acho que o abismo não apenas olhou para eles – foi mais além do que dissera Nietzsche, o abismo os devorou.
            Esses professores optaram pela ‘tirania’, todavia convém recordar Étienne de La Boétie em seu alerta muito útil aos ex-professores, agora aprendizes de operadores de fundos de pensão:

“Isso sempre aconteceu porque cinco ou seis obtiveram confiança do tirano e se aproximaram dele por conta própria, ou foram chamados por ele para serem cúmplices de suas crueldades, companheiros de seus prazeres, favorecedores de suas libidinagens e beneficiários de suas rapinas. Esses seis dominam tão bem seu chefe que ele se torna mau para a sociedade, não só com suas próprias maldades, mas também com a deles. Esses seis têm seiscentos à sua disposição, e fazem com esses seiscentos o que os seis fizeram com o tirano. Esses seiscentos têm sob suas ordens seis mil, que elevaram em dignidade. Fazem dar a eles o governo das províncias ou a administração do dinheiro público a fim de tê-los na mão por sua avidez ou crueldade, para que as exerçam oportunamente e façam tanto mal que não possam manter-se senão sob sua sombra nem se isentar das leis e das punições senão graças à sua proteção [...] Do mesmo modo, assim que um rei se declarou tirano, tudo o que é ruim, toda a escória do reino – [...] dos que são possuídos por uma ambição intensa e uma avidez notável – reúne-se ao redor dele e o apóia para participar do butim e se tornar pequenos tiranos sob o grande tirano. [...] É assim que o tirano subjuga os súditos – uns por meios dos outros – e se faz guardar por aqueles contra os quais deveria se precaver, se valessem alguma coisa. [...] Quando penso nas pessoas que bajulam o tirano para explorar sua tirania e a servidão do povo, muitas vezes fico admirado com sua maldade e sinto piedade de sua tolice. Pois, na verdade, o que é aproximar-se do tirano senão afastar-se cada vez mais da liberdade e, por assim dizer, abraçar e apertar com as duas mãos a servidão?” (Discurso da Servidão Voluntária, 2010, p. 62 – 64).

            A educação, mesmo tão precarizada pelo governo do PT, é uma das possibilidades na construção da práxis revolucionária que descortina os ‘tiranos’ e as ‘tiranias’, nos colocando além da servidão voluntária; mas, a opção pelo circo, pela sociedade do espetáculo, é o que prevalece.
E o que restará para os baianos e brasileiros depois do “grande espetáculo de 2014” – a Copa do Mundo de Futebol? Até lá um rastro de especulação, produção de monopólios e rendas diversas, e um caminho amplo para a corrupção e desvio do dinheiro público, conforme reportagem da Revista Caros Amigos (edição n° 166/2011 – Copa e Olimpíadas - o que realmente está em jogo?). Segundo o professor Carlos Vainer, as cidades brasileiras se transformarão num grande negócio, um negócio corrupto e com o aval da presidência da república, financiamento do BNDES, e, como as informações não são transferidas para a população, também com o apoio do povo. Espaços completamente privatizados pelas grandes corporações, tendo em vista que ao redor das áreas dos jogos o consumo em geral só é permitido para os que tem contrato com a FIFA.
            E o que fica depois da saída dos megaeventos, como as Copas e Olimpíadas? Ainda segunda matéria publicada na Caros Amigos: na Grécia depois da Olimpíada de 2004, o recurso destinado para construção da Vila Olímpica, com 2292 unidades, foi desperdiçado, pois o lugar hoje é deserto, não foi destinado para habitação social, entretanto é um prato cheio para especulações futuras. O mundial de futebol do ano passado na África do Sul deixou suas marcas, além do estado de exceção que vigora por exigência da FIFA nos locais dos jogos (que precisam ser ‘étnica e socialmente faxinados’), manifestações foram proibidas no mês da Copa; e trabalhadores que migraram para trabalhar nas obras centrais, hoje sofrem xenofobia.
Optamos pela educação que transcenda a auto-alienação do trabalho. Para poder ficar com a greve, a liberdade, a libertação, a revolução, o socialismo, o comunismo, e nunca abrir mão da Utopia.

* Mestre e Doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe. Professor do curso de Geografia da UNEB VI – Caetité-BA. Pesquisador do GPECT: Grupo de Pesquisa Estado, Capital, Trabalho e as políticas de reordenamento territorial – CNPQ. Membro do Grupo Crise – UNEB Campus VI.