Prof. Dr. Wagnervalter Dutra Júnior
UNEB/GPECT/PPGELS
O mito romano do deus
Jano mostrava um deus com duas faces que olham em sentido oposto. As duas faces
sinalizam equilíbrio, dualidade, oposição. Sol e Lua, feminino e masculino,
juventude e velhice; e, contemporaneamente, poderíamos lembrar de um
determinado par dialético, de um oposto em que a potência/força de um está no
outro, e, também, a sua negação; são capital e trabalho.
O filósofo grego,
Heráclito de Éfeso, entendia que a realidade estava em constante devir
(transformação), e a sua dinâmica, como tudo mais que existe, não pode escapar
a esse movimento, o que quer dizer que, desde o pré-socráticos (um determinado grupo
de filósofos gregos que antecederam Sócrates, que por suas preocupações com o estabelecimento
de uma cosmovisão mais ampla, ficaram conhecidos como pensadores originários),
podemos inferir que as forças que estão por trás de tudo que observamos,
que fazem mover o nosso cotidiano, nunca dormem; por essa razão Heráclito nos
deixou a seguinte pergunta: “Como alguém escaparia, diante do que nunca se põe?”.
No mundo contemporâneo
esse algo que nunca se põe, insidiosamente, parece que não está por aqui; temos
a impressão de que nossas vidas se atrelam ora a forças estranhas que não
controlamos, ora a uma força de vontade que pode chegar a ser capaz de moldar
os nossos destinos. O tempo, sendo rei, é esse interregno entre o estranho que
governa – um governo do estranho – e a força de vontade que molda o destino e,
por vezes, recebe algumas doses de um estimulante denominado meritocracia, como
uma pílula mágica para a dor – ou a individualização de todas as doses do que
faz uma vida; essa foi a narrativa que implodiu os EUA numa crise de vício em
oxicodona (vide série Dopesick, disponível no streaming Star + / Star Plus). Entre
o interregno e o limbo, é possível parar o tempo e o que não se põe?
Nada pode parar o tempo,
tampouco o que não descansa; todavia, a maneira como a sociedade canaliza a
força criadora da humanidade é fundamental para sabermos efetivamente que tipo
de sociedade queremos ser (?). Exemplifico: aproveitando-se das tragédias
provocadas pelas recentes chuvas no período do carnaval na cidade de São
Sebastião em São Paulo, comerciantes estavam vendendo fardos de 12 garrafas de
água de 500 ml por R$ 93,00 (noventa e três reais) (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/02/agua-por-r-93-procon-pede-que-moradores-denunciem-precos-abusivos-em-cidades-atingidas-pelas-chuvas-em-sp.ghtml).
Que sociedade somos? Por
que nos pregam essas ideias: das forças estranhas que nos controlam – quem são
essas forças-pessoas? – ou da força de vontade individual como definidora do
destino? –, e querem nos fazer acreditar nelas? Aos que produzem a nossa
percepção de tempo – ou ao menos nossa relação cultural com ele – importa que
estas ideias sejam apreendidas como algo tão banal quanto o ar que se respira,
ou “tão natural quanto a luz do dia”. E para que? Para que não saibamos que as
forças-pessoas ocultas, que, verdadeiramente não são tão ocultas assim, e que a
força de vontade que molda o destino –
por vezes também camuflada de empreendedorismo – na verdade visa retirar da
lógica econômica maior – dos grandes poderes econômicos dessa sociedade – a
responsabilidade por qualquer tragédia humanitária, ou mesmo pela fome que em
2022 ainda assolou 33 milhões de brasileiros e brasileiras, somando ainda 125,2
milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar,
conforme relatório de Rede PENSSAM (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e
Segurança Alimentar e Nutricional) publicado pela Oxfam.
A relação capital versus
trabalho materializa-se nessas diferentes questões, formas e relações acima
aludidas; e o fundamento central de sua lógica é dobrar todas as coisas, pessoas
e relações à força do dinheiro (que abriga parte da condição e do caminho para
que o lucro produzido pelo conjunto da sociedade – que fica em pouquíssimas
mãos, a dos burgueses – possa ser realizado e garantido). Entretanto esse mesmo
dinheiro que, sob a forma de lucro, juros ou renda; flui para as mesmas mãos,
só existe na exploração diária do trabalhador e na revitalização da
precariedade e flexibilização do trabalho ao ponto de sintonizá-lo, à lá
uberização, à forma e lógica mais perversa de funcionar do capital no âmbito de
sua crise estrutural e permanente, sua forma/fração financeira.
O capital financeiro,
pela via do poder social representado no dinheiro, chantageia todo o globo para
funcionar orquestrado às suas vontades, desejos, necessidades e imposições; e
estando seus representantes nos governos e no comando do Estado, esses capitalistas
financeiros (Paulo Guedes é banqueiro, assim como os dois últimos ministros da
fazenda anteriores a ele representam os bancos e o mercado financeiro – a exceção
é Fernando Haddad, atual ministro) – ao lado do capital produtivo que não mais
pode se dissociar das finanças –, dominam ampla e perversamente o controle do
trabalho e de sua reprodução, escravizando, terceirizando, quarterizando,
impondo formas precárias de trabalho parcial (part-time), jornadas de trabalho
vendidas parceladamente, conforme a necessidade imediata do patrão no chão da
fábrica, da escola, do comércio, do banco, da seguradora, da indústria
farmacêutica ou do complexo industrial-militar; tudo para que as bolsas de
valores sigam com as ações remunerando os parasitas e os mercados futuros
estejam garantidos na mais perversa das novas formas (re)inventadas de explorar
trabalho.
Além das formas diretas
da extração e exploração do trabalho, o capital financeiro nos explora fora da
nossa jornada de trabalho. E de que maneira? Um exemplo disso é a tributação, a
forma como os impostos são cobrados diferentemente dos super-ricos em relação
aos pobres (aqui incluídos pequeno e médio empresários). No relatório A
sobrevivência do mais rico: porque é preciso tributar os super-ricos agora para
combater as desigualdades, publicado pela Oxfam, é possível constatar que
Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, tendo uma fortuna de mais de 200
bilhões de dólares, paga impostos de pouco mais de 3%; enquanto Aber Christine,
uma comerciante de Kampala, que comercializa arroz, farinha e soja, lucra 80
dólares por mês e paga 40% em impostos. Outros dados, do mesmo relatório, corroboram
ainda mais o nosso argumento:
“• Desde 2020, o 1% mais rico amealhou quase dois
terços de toda a nova riqueza – seis vezes mais do que os 7 bilhões de pessoas
que compõem os 90% mais pobres da humanidade.
• As fortunas bilionárias estão aumentando em 2,7
bilhões de dólares por dia, mesmo com a inflação superando os salários de, pelo
menos, 1,7 bilhão de trabalhadores – mais do que a população da Índia.
• As empresas de alimentos e energia mais do que
dobraram seus lucros em 2022, pagando 257 bilhões de dólares a acionistas
ricos, enquanto mais de 800 milhões de pessoas foram dormir com fome.
• Apenas 4 centavos de cada dólar de receita
tributária vêm de impostos sobre o patrimônio, e metade dos bilionários do
mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão
aos filhos.
• Um imposto de até 5% sobre os super-ricos do mundo
poderia arrecadar 1,7 trilhão de dólares por ano, o suficiente para tirar 2
bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a
fome” (OXFAM, 2023).
Precisamos acreditar no
que acreditamos para nos convencermos de que esta forma de arranjar o mundo é a
única forma possível, surgida seja da vontade de Deus ou dos caminhos do
destino. Todavia o mundo é o mundo dos seres humanos, construídos pelas suas próprias
mãos. E não há justiça na forma como as coisas estão arranjadas nessa
sociedade. A fome não poderia sequer existir nesse século XXI, é por si só um
escândalo humanitário.
O capital financeiro é
uma espécie de alquimia moderna, produzindo ouro artificial com a sua pedra
filosofal. A pedra filosofal, como afirma Binswanger em seu livro Dinheiro
e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe, não é,
“portanto, a substância da qual o ouro é feito, mas o
aditivo essencial, o fermento ou catalisador que efetua a transmutação
(ou transformação) do metal comum em precioso. O metal comum preferido para
isso era o chumbo, associado ao planeta (e portanto ao deus) Saturno. O nome
grego para Saturno é Cronos, que, por associação com a palavra Chronos (‘tempo’),
sugere transitoriedade. Assim, Saturno é representado em ilustrações alquímicas
por um velho com uma ampulheta e uma
foice. Relacionado a essa alquimia, o processo envolve a conversão de chumbo,
metal inferior e símbolo do transitório, em ouro, metal precioso e símbolo do
eterno [...] A alquimia é, portanto, uma tentativa do homem para escapar do
tempo enquanto ainda está nele – seu esforço para se libertar da
transitoriedade enquanto está nesta vida” (2011, p. 55).
Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o
transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer
nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar
contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc
Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia
financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos,
algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017
ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os
quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e
o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco
Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e
correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos
capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes
maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017,
correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando
todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui
desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras
donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se
seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?
A pedra filosofal é a mágica, o disfarce, o
convencimento. A pedra filosofal precisava, para ser “mágica”, fazer esquecer
ou obnubilar o seguinte ponto: o trabalho que tira o chumbo da terra, é o mesmo
trabalho que acha o ouro real. O que sobe à superfície? O detalhe, o parcial, o
brilho do chumbo transmutado, ou o ouro e tudo mais que parece também aportar fantasmagoricamente
à terra, por que a aparência – ideologicamente – é mais importante do que a
mão, e é justamente a mão que não é invisível que insiste em ser completamente
escondida, ignorada e negada em sua existência, que perfaz esse par dialético
que cria um mundo para o mal; todavia poderia fazê-lo pelo exato oposto. A verdadeira
pedra filosofal de tudo é a nossa mão.
Referências
BINSWANGER, H. C. Dinheiro e magia:
uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.