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Élysée Reclus

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sobre pares dialéticos e ouro de tolo: “e se a pedra filosofal tivessem, ainda o filósofo faltava à pedra”

Prof. Dr. Wagnervalter Dutra Júnior

UNEB/GPECT/PPGELS

 

O mito romano do deus Jano mostrava um deus com duas faces que olham em sentido oposto. As duas faces sinalizam equilíbrio, dualidade, oposição. Sol e Lua, feminino e masculino, juventude e velhice; e, contemporaneamente, poderíamos lembrar de um determinado par dialético, de um oposto em que a potência/força de um está no outro, e, também, a sua negação; são capital e trabalho.

O filósofo grego, Heráclito de Éfeso, entendia que a realidade estava em constante devir (transformação), e a sua dinâmica, como tudo mais que existe, não pode escapar a esse movimento, o que quer dizer que, desde o pré-socráticos (um determinado grupo de filósofos gregos que antecederam Sócrates, que por suas preocupações com o estabelecimento de uma cosmovisão mais ampla, ficaram conhecidos como pensadores originários), podemos inferir que as forças que estão por trás de tudo que observamos, que fazem mover o nosso cotidiano, nunca dormem; por essa razão Heráclito nos deixou a seguinte pergunta: “Como alguém escaparia, diante do que nunca se põe?”.

No mundo contemporâneo esse algo que nunca se põe, insidiosamente, parece que não está por aqui; temos a impressão de que nossas vidas se atrelam ora a forças estranhas que não controlamos, ora a uma força de vontade que pode chegar a ser capaz de moldar os nossos destinos. O tempo, sendo rei, é esse interregno entre o estranho que governa – um governo do estranho – e a força de vontade que molda o destino e, por vezes, recebe algumas doses de um estimulante denominado meritocracia, como uma pílula mágica para a dor – ou a individualização de todas as doses do que faz uma vida; essa foi a narrativa que implodiu os EUA numa crise de vício em oxicodona (vide série Dopesick, disponível no streaming Star + / Star Plus). Entre o interregno e o limbo, é possível parar o tempo e o que não se põe?

Nada pode parar o tempo, tampouco o que não descansa; todavia, a maneira como a sociedade canaliza a força criadora da humanidade é fundamental para sabermos efetivamente que tipo de sociedade queremos ser (?). Exemplifico: aproveitando-se das tragédias provocadas pelas recentes chuvas no período do carnaval na cidade de São Sebastião em São Paulo, comerciantes estavam vendendo fardos de 12 garrafas de água de 500 ml por R$ 93,00 (noventa e três reais) (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/02/agua-por-r-93-procon-pede-que-moradores-denunciem-precos-abusivos-em-cidades-atingidas-pelas-chuvas-em-sp.ghtml). 

Que sociedade somos? Por que nos pregam essas ideias: das forças estranhas que nos controlam – quem são essas forças-pessoas? – ou da força de vontade individual como definidora do destino? –, e querem nos fazer acreditar nelas? Aos que produzem a nossa percepção de tempo – ou ao menos nossa relação cultural com ele – importa que estas ideias sejam apreendidas como algo tão banal quanto o ar que se respira, ou “tão natural quanto a luz do dia”. E para que? Para que não saibamos que as forças-pessoas ocultas, que, verdadeiramente não são tão ocultas assim, e que a força de vontade que  molda o destino – por vezes também camuflada de empreendedorismo – na verdade visa retirar da lógica econômica maior – dos grandes poderes econômicos dessa sociedade – a responsabilidade por qualquer tragédia humanitária, ou mesmo pela fome que em 2022 ainda assolou 33 milhões de brasileiros e brasileiras, somando ainda 125,2 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar, conforme relatório de Rede PENSSAM (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) publicado pela Oxfam.

A relação capital versus trabalho materializa-se nessas diferentes questões, formas e relações acima aludidas; e o fundamento central de sua lógica é dobrar todas as coisas, pessoas e relações à força do dinheiro (que abriga parte da condição e do caminho para que o lucro produzido pelo conjunto da sociedade – que fica em pouquíssimas mãos, a dos burgueses – possa ser realizado e garantido). Entretanto esse mesmo dinheiro que, sob a forma de lucro, juros ou renda; flui para as mesmas mãos, só existe na exploração diária do trabalhador e na revitalização da precariedade e flexibilização do trabalho ao ponto de sintonizá-lo, à lá uberização, à forma e lógica mais perversa de funcionar do capital no âmbito de sua crise estrutural e permanente, sua forma/fração financeira.

O capital financeiro, pela via do poder social representado no dinheiro, chantageia todo o globo para funcionar orquestrado às suas vontades, desejos, necessidades e imposições; e estando seus representantes nos governos e no comando do Estado, esses capitalistas financeiros (Paulo Guedes é banqueiro, assim como os dois últimos ministros da fazenda anteriores a ele representam os bancos e o mercado financeiro – a exceção é Fernando Haddad, atual ministro) – ao lado do capital produtivo que não mais pode se dissociar das finanças –, dominam ampla e perversamente o controle do trabalho e de sua reprodução, escravizando, terceirizando, quarterizando, impondo formas precárias de trabalho parcial (part-time), jornadas de trabalho vendidas parceladamente, conforme a necessidade imediata do patrão no chão da fábrica, da escola, do comércio, do banco, da seguradora, da indústria farmacêutica ou do complexo industrial-militar; tudo para que as bolsas de valores sigam com as ações remunerando os parasitas e os mercados futuros estejam garantidos na mais perversa das novas formas (re)inventadas de explorar trabalho.

Além das formas diretas da extração e exploração do trabalho, o capital financeiro nos explora fora da nossa jornada de trabalho. E de que maneira? Um exemplo disso é a tributação, a forma como os impostos são cobrados diferentemente dos super-ricos em relação aos pobres (aqui incluídos pequeno e médio empresários). No relatório A sobrevivência do mais rico: porque é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades, publicado pela Oxfam, é possível constatar que Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, tendo uma fortuna de mais de 200 bilhões de dólares, paga impostos de pouco mais de 3%; enquanto Aber Christine, uma comerciante de Kampala, que comercializa arroz, farinha e soja, lucra 80 dólares por mês e paga 40% em impostos. Outros dados, do mesmo relatório, corroboram ainda mais o nosso argumento:

 

“• Desde 2020, o 1% mais rico amealhou quase dois terços de toda a nova riqueza – seis vezes mais do que os 7 bilhões de pessoas que compõem os 90% mais pobres da humanidade.

• As fortunas bilionárias estão aumentando em 2,7 bilhões de dólares por dia, mesmo com a inflação superando os salários de, pelo menos, 1,7 bilhão de trabalhadores – mais do que a população da Índia.

• As empresas de alimentos e energia mais do que dobraram seus lucros em 2022, pagando 257 bilhões de dólares a acionistas ricos, enquanto mais de 800 milhões de pessoas foram dormir com fome.

• Apenas 4 centavos de cada dólar de receita tributária vêm de impostos sobre o patrimônio, e metade dos bilionários do mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão aos filhos.

• Um imposto de até 5% sobre os super-ricos do mundo poderia arrecadar 1,7 trilhão de dólares por ano, o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome” (OXFAM, 2023).

Precisamos acreditar no que acreditamos para nos convencermos de que esta forma de arranjar o mundo é a única forma possível, surgida seja da vontade de Deus ou dos caminhos do destino. Todavia o mundo é o mundo dos seres humanos, construídos pelas suas próprias mãos. E não há justiça na forma como as coisas estão arranjadas nessa sociedade. A fome não poderia sequer existir nesse século XXI, é por si só um escândalo humanitário.

O capital financeiro é uma espécie de alquimia moderna, produzindo ouro artificial com a sua pedra filosofal. A pedra filosofal, como afirma Binswanger em seu livro Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe, não é,

 

“portanto, a substância da qual o ouro é feito, mas o aditivo essencial, o fermento ou catalisador que efetua a transmutação (ou transformação) do metal comum em precioso. O metal comum preferido para isso era o chumbo, associado ao planeta (e portanto ao deus) Saturno. O nome grego para Saturno é Cronos, que, por associação com a palavra Chronos (‘tempo’), sugere transitoriedade. Assim, Saturno é representado em ilustrações alquímicas por um velho com uma ampulheta  e uma foice. Relacionado a essa alquimia, o processo envolve a conversão de chumbo, metal inferior e símbolo do transitório, em ouro, metal precioso e símbolo do eterno [...] A alquimia é, portanto, uma tentativa do homem para escapar do tempo enquanto ainda está nele – seu esforço para se libertar da transitoriedade enquanto está nesta vida” (2011, p. 55).

 

Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos, algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017 ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017, correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?

A pedra filosofal é a mágica, o disfarce, o convencimento. A pedra filosofal precisava, para ser “mágica”, fazer esquecer ou obnubilar o seguinte ponto: o trabalho que tira o chumbo da terra, é o mesmo trabalho que acha o ouro real. O que sobe à superfície? O detalhe, o parcial, o brilho do chumbo transmutado, ou o ouro e tudo mais que parece também aportar fantasmagoricamente à terra, por que a aparência – ideologicamente – é mais importante do que a mão, e é justamente a mão que não é invisível que insiste em ser completamente escondida, ignorada e negada em sua existência, que perfaz esse par dialético que cria um mundo para o mal; todavia poderia fazê-lo pelo exato oposto. A verdadeira pedra filosofal de tudo é a nossa mão.

 

Referências

 

BINSWANGER, H. C. Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2020.