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Votar é abdicar -
Élysée Reclus

quinta-feira, 14 de julho de 2022

“Conflitos por terra e produção artificial de sua renda no contexto da luta camponesa contra o capital: ponderações críticas”

                                                                                          Wagnervalter Dutra

                                                                                 UNEB/GPECT 

            Nosso ponto de partida para buscar esse concreto-pensado em movimento é: não existiria capital sem a conversão da terra em propriedade privada (seu controle em poucas mãos). Ao olhar para os lados nos deparamos com aquele ainda imenso acúmulo de mercadorias, que Marx (2013), ao abrir as páginas do capital sugeriu como uma cena que esboça a aparência da riqueza, ancorada nessa coleção de mercadorias acumuladas. O controle da terra se impõe como marca de nascença de todas as mercadorias, ora como a distância entre as mãos e a terra a ser cultivada, seja a distância física ou da mediação dos meios necessários para produzir; ora como a descoberta por Marx da fenda metabólica – levando em conta, inclusive, elementos da química – que Foster (2012) sinalizou quando discutiu em um artigo a ecologia da economia política de Marx.

            Em um dos tópicos do texto supramencionado, Marx e o Raubbau capitalista, Foster (2012) relembra que em seu primeiro ensaio político-econômico Marx discutiu o furto de madeira e as modificações que criminalizavam um costume antigo por parte dos camponeses. A maioria dos que estavam presos na Prússia daquele período eram camponeses presos por recolher madeira morta nas florestas. A edificação da propriedade privada obstaculizou um costume antigo e habitual dos camponeses, o que estava em tela era a proteção, recorda Marx, dos direitos de propriedade dos donos da terra (e o direito habitual dos camponeses foi completamente ignorado). O capitalismo inicia-se, recorda Foster (2012), “[...] como um sistema de usurpação da natureza e da riqueza pública” (p. 88). Ainda no debate sobre o furto de madeira, Marx (2017) detalha essa inversão ao domínio da propriedade e até ao que organicamente se afasta dela em decorrência do processo,

 

Para apropriar-se de madeira verde é preciso separá-la com violência de sua ligação orgânica. Assim como isso representa um atentado evidente contra a árvore, representa um atentado evidente contra o proprietário da árvore [...] Ademais, se a madeira cortada for furtada de um terceiro, ela é produto do proprietário. Madeira cortada já é madeira formada. A ligação natural com a propriedade foi substituída pela ligação artificial. Portanto, quem furta madeira cortada furta propriedade (MARX, 2017, p. 80 - 81).

 

  A regulação estatal-legal da propriedade privada, sob o comando da influência econômico-política da burguesia, já amplamente difundida em meados do século XIX, começou modificando os hábitos em relação à posse ou acesso aos bens da natureza, que se efetivavam de maneira comunal, no exemplo da agora metamorfoseada coleta da madeira – que estava no chão – em “furto de madeira”.

            Limitado o acesso, a máquina estatal foi redefinindo a maneira como a terra tomba sob a mediação da propriedade privada, que a inscreveu na mercantilização e, por conseguinte, no ato em que se mediu por um quantum determinado de dinheiro, passando assim a equivalente de um tempo de trabalho socialmente necessário, mesmo sem ser mercadoria, pois não é fruto do trabalho humano. E as mercadorias, convém recordar, carregam o duplo aspecto do uso e da troca. E como destaca Foster (2012) a partir de Marx:

 

Valor de uso era associado aos requisitos da produção em geral e com as relações básicas dos homens com a natureza, ou seja, as necessidades humanas fundamentais. O valor de troca, por outro lado, era orientado para a busca do lucro. Isso estabeleceu uma contradição entre a produção capitalista e a produção em geral (as condições naturais da produção) (p. 88).

 

         Foster (2012) então faz menção ao Paradoxo de Lauderdale, mais evidente nos tempos de Marx, e que se destina a demarcar essa contradição entre a produção capitalista e as condições naturais da produção. Lauderdale era um dos primeiros economistas políticos clássicos, e explicava que a riqueza pública consistia em valores de uso que sempre existiram em abundância, a exemplo do ar, da água; já as riquezas privadas baseavam-se em valores de troca e demandavam escassez. No âmbito dessas condições, sustentava ele contra o sistema, a expansão da riqueza privada só podia significar e andar de mãos dadas com a destruição da riqueza pública; ao exemplificar assevera: “se as fontes de água, que anteriormente eram livremente disponíveis, fossem monopolizadas e houvesse uma taxa nos poços, a medida de riqueza da nação seria aumentada graças ao gasto de riqueza pública” (LAUDERDALE apud FOSTER, 2012, p. 88).

            Sob a inversão das duas formas do valor (uso e troca) Marx enxergou o Paradoxo de Lauderdale como uma entre as principais contradições da produção capitalista, cujo inteiro padrão de desenvolvimento caracteriza-se pela destruição e desperdício da riqueza natural da sociedade (FOSTER, 2012). Por isso, sustentando-se no químico Liebig, Marx compreendeu que quando o capital transportava fibras, alimentos e mercadorias por longos quilômetros, significava que nutrientes como fósforo ou potássio estavam sendo retirados do solo para virar poluição nas cidades, não retornando à terra – os frutos da terra já foram capturados.

Cabe voltar a outro alerta de Marx (2013), quando ele analisa a acumulação primitiva do capital – e essa perversão da relação na forma jurídica mercantilizada que é parte dessa totalidade do processo –, ele remete ao Direito como fonte de expropriação junto ao trabalho já expropriado, como únicos meios de enriquecimento.

No processo real Marx (2013) é assertivo ao expor a violência como sua base, na economia política, mais branda, reinava o idílico. O trabalho pariu-se dessa violência, o (esse) idílico e sua forma de criar o cândido e otimista melhor dos mundos possíveis tem a economia política como pai e o Direito como progenitora. Transpondo o idílico para normatizar a vida, supostamente harmoniosa nas fantasias liberais, o Direito vela a contradição e torna-se parte da ideologia, um dos braços que a habilita com efeitos práticos, e a torna em parte interpretada como a maneira com que se balizam as soluções ou mediações de conflitos na sociedade; porém o Direito, por sua natureza espelhada na forma valor, abandonou a contradição e deitou-se com o consenso, sua ‘neutralidade’ habilita a desigualdade resignada estampada nas relações de classe.

Alienar a terra e diretamente os frutos da terra como propriedade foi o coroamento dessa chave aberta pela acumulação primitiva e geral do capital, de prender para além da propriedade o trabalho que dela já se apartou. O que a terra hoje significa ou representa capturada pela esfera financeira? E a renda se torna fictícia assim como o capital? – (este último já há certo tempo).

Parece que as coisas se desprendem do todo, da totalidade, e só existem como partes, por essa razão a financeirização nos fez acreditar que o trabalho era dispensável (a fantasia de automatização/automação do D – D’). Cabe ao capital financeiro a pergunta: é possível especular com commodities de mercados futuros, como a soja, ferro, petróleo, sem a garantia do avalista disso tudo? (A mão que semeia a terra, que minera os metais, que cava poços e extrai petróleo)?

Mas na sanha desse trabalho aparente dispensável, que potencializa a produtividade e amplia sua capacidade de produzir valor controlando as melhores condições, da produção à distribuição chegando ao consumo, e auferindo uma vantagem, traduzida em renda, por parte do portador daquele lugar privilegiado no processo, que é a terra (fonte de valor de uso). E hoje com a financeirização – especulativa – da terra e dos frutos da terra, como se desenham essas vantagens que a renda traduz (absoluta, diferencial I e II) em benefício daquele controlador imediato, se ele não mais existe diretamente, senão como personificação do capital no ramo das holdings, corporações e demais formas de conglomerar  e centralizar o capital, ou seja, nos paraísos fiscais que as fusões finanças-produção – impossíveis de dissociar como processo – não mais conseguem disfarçar? Como negociar terras indiretamente na bolsa de valores? Garantindo, virtual ou efetivamente, ainda que sob pressão especulativa, mais trabalho e mais terra, para garantir o mais-valor.

Se os latifúndios do Brasil formassem um país, por exemplo, ele seria o 12º maior território do planeta, com 2,3 milhões de km², área maior que a Arábia Saudita, é o que informa o Atlas do Agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos, publicado pela Fundação Heinrich Böll, no ano de 2018.

Baseado em dados da Oxfam, o Atlas, ao discutir quem são os donos da terra no Brasil, relaciona com o contexto da América Latina, cuja conjuntura histórica e geopolítica legou à região a pior distribuição de terras em todo o Mundo: 51,19% das terras agrícolas estão concentradas nas mãos de apenas 1% dos proprietários rurais. No caso brasileiro, ocupamos o 5º lugar no ranking de desigualdade no acesso à terra, o Brasil possui 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades superiores a mil hectares – o que soma míseros 0,91% do total de imóveis rurais.

Tal nível de concentração fundiária leva a um comportamento flutuante e especulativo aos próprios preços de alimentos (queijo / leite / arroz / feijão / café, dentre outros), na medida em que o valor de troca orienta-se pela escassez, é possível articular nesse nível de concentração o que a maior parte da superfície de um país vai produzir – soberania alimentar precisa ser discutida nessa fusão entre os proprietários fundiários locais e o capital especulativo mundializado. Não apenas o que comemos, mas o preço e a qualidade são agora controlados por essa fusão corporativa, que laçou a terra ao braço produtivo-financeirizado das grandes corporações que a controla direta ou indiretamente (produção agrícola para exportar, como a soja; produção de alimentos, mineração e controle da água. O agri-hidro-negócio é cada vez mais financeirizado). A terra e o trabalho continuam a garantir o ‘moinho satânico’ do capital.

O processo de grilagem, fruto das decorrências históricas da lei de Terras de 1850, que criou uma espécie de fundo/estoque de terras públicas, permitiu aos proprietários fundiários (coronéis), pelas suas conexões com o braço do Estado, se apropriar dessas terras. Ainda hoje, esse estoque de terras públicas, chama a atenção o Atlas, soma 10,9% da superfície agrícola do país, mas como gosta de recordar alguns geógrafos e geógrafas, porém, não existe terra sem cercas nesse país.

A farra da grilagem e falsificação de titulação de propriedade e apropriações irregulares foi de tal intensidade que chegamos ao seguinte dado, conforme o Atlas da terra Brasil 2015: o país tem registrados 38 milhões de hectares de terra a mais do que a superfície total comporta, fenômeno conhecido como beliches ‘fundiários’. O Brasil possui 453 milhões de hectares privados, correspondendo a 53% de todo o território nacional, 28% das terras privadas tem tamanhos que extrapolam 15 módulos fiscais e os 66 mil imóveis declarados como ‘grande propriedade improdutiva’ perfazem estrondosos 175,9 milhões de hectares (apud Atlas do AgronegócioI, 2018). Quem determina o que será da terra nessa configuração de forças econômico-políticas?

Dos 26 estados brasileiros mais o DF, 16 contam com mais de 80% de suas terras em propriedades privadas. Mato Grosso, vice campeão, tem 92,1% de sua área sob títulos privados e o maior índice de latifúndios (83%). A Bahia tem 91,7% de seu território sob titulação privada em 55% de grandes propriedades, acima de 15 Módulos Fiscais (ATLAS, 2018).

O Atlas do Agronegócio ainda chama atenção sob um aspecto que merece ser considerado. Grande parte da produção brasileira de commodities agrícolas está vinculada a conglomerados de estrutura verticalizada, que controlam do plantio à comercialização (a totalidade da produção direta e a produção indireta fora do seu círculo acaba tendencialmente controlada quando orbita ao redor dessa lógica). SLC agrícola (404 mil hectares), Grupo Colin/Tibra Agro (300 mil hectares), Amaggi (252 mil), Brasil Agro (177 mil), Adecoagro (164 mil), Terra Santa (156 mil), Grupo Bom Futuro (102 mil) e Odebrecht Agroindustrial (48 mil) são algumas das empresas que exploram o mercado de terras, tanto para a produção de commodities quanto para a especulação financeira. O cerrado segue ameaçado, tendo perdido área superior à Amazônia (236 ante 208 mil hec no ano de 2018). (ATLAS, 2018).

Tudo isso desenhado pela pressão do capital agro-financeirizado no campo e nas redefinições das relações de produção e trabalho – que contraditoriamente não dispensa aquela parcela que se reproduz pela forma não tipicamente capitalista, o campesinato. A agropecuária em escala industrial – financeira – é apontada como principal fator de mudança do uso da terra. Entre 2000 e 2016,

 

[...] de acordo dados da plataforma MapBiomas, o cultivo perene de grãos (como soja, milho e sorgo) passou de 7,4 milhões para 20,5 milhões de hectares, uma área duas vezes maior que Portugal; a cana de açúcar saltou de 926 mil para 2,7 milhões de hectares. Já a pecuária manteve seu reinado inconteste sobre o Cerrado, avançando de 76 milhões para 90 milhões de hectares: um território equivalente à Venezuela só de postagens” (ATLAS, p. 15) (o gado que anda em motociatas deve gostar é dessa Venezuela).

 

Convém observar que o período dessa expansão equivale ao período em que a desregulamentação neoliberal era um projeto no país, mesmo que sob a tinta do neodesenvolvimento.

A expansão é em grande parte sobre o território do Matopiba (Maranhão, tocantis, Piauí e Bahia – agronegócio), área de 400 mil km² e que engloba a última fronteira agrícola brasileira com 57% dos imóveis rurais nas mãos de grandes proprietários. Na Caatinga, 93,2% das terras são propriedades privadas (ATLAS, 2018).

Postas tais questões convém refletir sobre a renda fictícia nos termos de outro questionamento: os 38 milhões de hectares fictícios (beliches fundiários), são garantias do que senão do processo de ampliação de commodities e de especulação sobre a terra e todos os seus frutos? Na terra que não existe o trabalho deixa de ser encontrado, então a lógica D – D’ nutre e retroalimenta a terra fictícia, o que muitas vezes leva países inteiros de volta ao mapa da fome como no Brasil de Bolsonaro. A terra pode ser fictícia, porém a fome é cada vez mais real, na medida em que o processo do trabalho produtor de usos continua relegado na esfera do valor que se valoriza. Por essa razão controlam até o que comemos e como comemos, fora a produção industrial que retira componentes nutritivos do alimento para induzir ao vício e não saciar a fome.

A 3G capital, grupo controlado por brasileiros que fundaram a Ambev, hoje AbInbev, foi crescendo o seu poder de controlar a água, a terra e os frutos da terra. No início produzia cerveja e passou a comprar outras corporações/indústrias do ramo alimentício, como a Burguer King, a Heinz (que controla o grupo Kraft Foods – formou a Kraft Heiz) em parceira com o conhecido investidor Warren Buffet; controlam hoje absurdos, a partir da AbInbev, 25% (¼) das vendas mundiais de cerveja, 1 a cada 4 cervejas abertas no mundo são deles. Imagine a extensão do poder de um conglomerado dessa natureza no controle da terra e da água, basta lembrar que a fabricação de cerveja consome imenso volume de água. Ao mesmo tempo que tomamos uma cerveja estamos contribuindo com o processo da formação da fome ideal e real, é a dura face da totalidade contraditória do capital (ATLAS, 2018).

Toda a atual arquitetura institucional-estatal que pesou para capturar a terra foi traçada pelo Banco Mundial desde o começo da década de 1990, cuja política objetivava fazer-se pelos seguintes passos/programas: cadastro e georreferenciamento de imóveis rurais, privatização de terras públicas e comunitárias, titulação de posses; mercantilização da reforma agrária; o mercado de terras (Crédito Fundiário, Banco da Terra, Nossa Primeira Terra); e a integração dos camponeses ao agronegócio. Como apontam Resende e Mendonça (2004), esse foi o receituário do BM para a terra ecoando o Consenso de Washington. O que essas exigências guardavam?

Observa-se que a titulação e a formalização jurídica da propriedade estão completamente voltadas para inseri-las, como terra prometida, como valor de uso sob controle, num mercador desregulado e nas mãos das finanças especulativas. O papel que os ‘beliches fundiários’ tem a cumprir agora fazem mais sentido, todavia apenas na irracionalidade substantiva subjacente à lógica do capital.

‘Terras fictícias’ passeiam por e pressionam as terras reais de quem são os reais produtores do alimento, que também se reproduzem no âmbito contraditório de como as relações capitalista no campo brasileiro utilizaram-se das formas não diretamente capitalistas para sua garantia reprodutiva. O trabalho escravo ocupa que papel na regulação da composição orgânica do capital? Já refletimos sobre isso? Ou sua existência prova as contradições das tendências e contratendências ao decrescimento da taxa de lucro?

Tal pressão exercida sobre o campo aprofundou-se após o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, que ao retirar Dilma Rousseff do poder abriu caminho para ampliar o domínio do rentismo e das finanças sobre a terra e toda a sociedade brasileira (quantas indústrias fechadas em decorrência dessa irracionalidade?). Por essa razão os conflitos por terra e água explodiram no último governo, representante prático da instalação real-concreta da ponte para o futuro de Temer (aquele era o programa dos burgueses e latifundiários desse país). Algo que é comum e curioso merece destaque, a saber, a usual fusão, ou melhor, personificação, dos políticos do legislativo/executivo como latifundiários. Como exemplo; só um dos integrantes da bancada do Boi (ruralista), o deputado Newton Cardoso (MDB de Minas) possui 185 mil hectares em 145 fazendas – (CASTILHO, 2012).

Dados apontam o aumento de 75% dos assassinatos no campo de 2020 para 2021 (Brasil de Fato). Em decorrência da ação de garimpeiros e outras violências como o trabalho escravo, o Jornal Correio Braziliense com base nos estudos da CPT, identificaram aumento de 1.100% das mortes em consequências desses combates.

A mineradores seguem apropriando-se das terras comuns (fundo e fecho de pasto) e das nascentes no Alto Sertão baiano, como já é conhecida a ação da Bamin, no caso do Projeto Pedra de Ferro que engloba as regiões de Caetité, Pindaí, Guanambi e adjacências.

Associado à mineração o grande capital Chinês se apropriou do controle da ferrovia oeste-leste (FIOL), construída com recursos do PAC do período Lula-Dilma, e cedida aos chineses pelo governo do Estado da Bahia pelos próximos 35 anos.

O caderno Conflitos do Campo 2021, publicados pela Comissão Pastoral da Terra, registram conflitos por terra em decorrência da pressão do capital na ocupação de terras/territórios – FIOL serve a isso também – pelos grandes empreendimentos mineradores e pela especulação do capital.

Em Caetité, por exemplo, em Curral Velho e Serragem, por conta da FIOL, 200 famílias estiveram envolvidas em conflitos. Todavia a atividade de mineração responde fundamentalmente pelos conflitos por água na região. Em Caetité registram-se nove conflitos por água (demarcados pela categoria Barragens e Açudes), e o Projeto Pedra de Ferro da Bamin (produção de minério de ferro) está presente em 7 registros do total de conflitos; uma comunidade sem o registro direto da atividade geradora do conflito e outra comunidade a tensão gerada se deu em decorrência da FIOL. O total de famílias envolvidas em conflitos por água, para que o dinheiro estranho de Luxemburgo (BAMIM) possam seguir lucrando, perfazem o total de 466 famílias (CPT, 2021).

O Caderno Conflitos do Campo ainda resgata conflitos rurais em duas séries de períodos históricos considerados, 2011/2015 e 2016/2021. Comparando os dois períodos registraram-se: incremento de 76,34% de conflitos por terra; queda de 29,63% de conflitos trabalhistas (que a reforma explica em parte, já que praticamente legaliza a escravidão, ao desregular ainda mais para o capital o âmbito formal-contratual da relação jurídica patrão-empregado); aumento de 240,40% de conflitos por água. No total de todos os conflitos houve aumento médio de 54,13%. Os assassinatos comparados entre a série histórica aludida cresceram 34,04%, com aumento de 55,08% de pessoas envolvidas e perfez um aumento de 376,97% na área (hectares) em que se registraram os conflitos (CPT, 2021).

Uma série histórica sempre crescente, acentuada pós-2016, e que em paralelo demonstra o contínuo avanço do capital no controle da terra e da água no campo brasileiro, não sem conflitos e resistências necessárias, ainda que limitadas pela atual conjuntura política e de correlação de forças.

O norte e nordeste (a periferia brasileira) seguem recordistas na concentração das ocorrências especializadas de conflitos registrados – novas fronteiras agrícolas virão, é possível presumir? –, com 47% no Norte e 31% no Nordeste. Da totalidade dos conflitos as populações e categorias mais atingidas são os indígenas, quilombolas, posseiros e sem terras com percentuais de 26%, 17%, 17% e 14%, respectivamente. Fazendeiros e empresários são os maiores geradores de ações que levam aos conflitos com 21,40% delas sob responsabilidade dos fazendeiros e 20,00% levada a cabo pelos empresários. Outro registro fundamental da extensão do controle da terra pelas forças hegemônicas do capital diz respeito aos números dos projetos de assentamentos de reforma agrária que caíram assustadoramente de um pico de 858 projetos no ano de 2005, para apenas 2 projetos em 2019. (CPT, 2021). O projeto é do controle privatista total da terra e da água, direta e indiretamente.

É preciso redesenhar e redefinir muitos rumos da luta camponesa, sobremodo depois da ativação do necrocapitalismo, que conforme Miranda é uma noção mais precisa do que necropolítica, pois essa última soa como externalidade. A luta é pela radical subversão do sociometabolismo do capital para que os frutos da terra se libertem da dupla alienação a que foram submetidos: como extensão da propriedade e como distância das mãos que o produzem. Essa é a subversão que queremos, a que destine os seres humanos a dominarem a totalidade da produção, e não o contrário, que é exatamente o que acontece cada vez mais hoje.

 

Referências

 

Atlas do agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Maureen Santos, Verena Glass, organizadoras. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2018.

CASTILHO, A. L. Partido da terra: como políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012.

Conflitos no campo: Brasil 2021 / Centro de documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2022.

MARX, K. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2017.

MIRANDA, G. Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam. São Paulo: Lavrapalavra, 2021.

RESENDE, M. & MENDONÇA, M. L. Apresentação. In: MARTINS, M. D. (org.). O Banco Mundial e a terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004.

P.S: o presente texto foi elaborado para participação da mesa com tema: conflitos por terra e produção artificial de sua renda no contexto da luta camponesa contra o capital no âmbito da VI JURA - Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária, promovida pela UESB e UESC.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O espetaculoso-dinheiro metafísico: notas sobre “o” mendigo e a escravização ao fim em-si regadas a Elon Musk como acionista do Twitter

                                                              Wagnervalter Dutra

                                          UNEB DCH VI/PPGELS/GPECT

 

A cada dia que passa tem-se a impressão que ficamos cada vez mais distantes de duas coisas essenciais a nós: humanidade e materialidade enquanto processo. Acredito que ambas sejam imanentes à constituição do ser social, logo um par dialético, a materialidade que nasce do metabolismo com a natureza abraça, a princípio, um trabalho produtor de sentidos e materialidades além de si – sem o qual não se habilita o para si –, passo fundante para a sociabilidade e humanização (também da natureza, como da nossa naturalização).

Olhamos ao redor e parece que estranhezas e estranhamentos são os dois ingredientes de um mal estar assustador a reger a aparente normalidade cotidiana da vida, que vai dos regados à mais aberta exploração de imagens mercantilizadas, cujos portadores da promoção desse tosco espetáculo somos nós; à impulsão de efemeridades que turvam os ares dessa “atmosfera” do “estar de pé para fazer a história”, em ambos os contextos já sabemos quem são as maiores vítimas desse moinho satânico.

O alerta de Polanyi a respeito do moinho satânico guarda, sobremodo, sua atualidade, na medida em que as relações mercantis que se fazem concretas, são portadoras de um lado, da produção dos “átomos dispensáveis” e da destruição do componente de socialidade das relações sociais; e, do outro, vê-se dispensada de prestar contas com o peso da materialidade inerente às formas de metabolismo social, pois o trabalho, componente fundante dessa interação, capaz de produzir novas materialidades e ressignificar as existentes, é, a cada passo, uma persona-coisa non grata na composição da medida do valor como tempo de trabalho socialmente necessário.

O valor é hoje um tempo destituído da substância do trabalho, um tempo sem trabalho ou a pura oferta da carcaça do tempo? (já que o trabalho representado no emprego/ocupação se esvai quase na mesma velocidade da proporção em que a cada dia, ainda que numa pandemia, cuja argumentação foi de uma economia destruída – mas para quem, Elon Musk, Jeff Bezos ou os irmãos Leman? –, mais e mais bilionários são gestados em meio ao avassalador rolo compressor da taxa decrescente do valor de uso, muito bem representado pelo aumento da velocidade cíclica requerida pelo capital financeiro).

Em que medida que esse intangível capital financeiro é capaz de nos desumanizar concretamente? Qual o tipo e a extensão do poder que o capital financeiro tem? É possível mensurá-lo? Antes de retornar às questões aludidas cabe entender que as contradições da própria acumulação capitalista, conforme apontadas por Marx (2013), impelem os capitalistas a busca por contornar os entraves no tempo de giro do capital, na ampliação do seu ciclo e nas flutuações que o capital variável poderia oferecer, atravancando assim a produção segundo a medida ancorada no ethos da lucratividade do capital.

Tocando em miúdos, a dimensão do espaço-tempo e a força de trabalho precisam se ajustar constantemente às pressões históricas intrínsecas à  da reprodução capitalista, porém, cabe lembrar, que, ao expulsar (equivalendo até mesmo precarização e desvalorização da força de trabalho) o trabalhador do processo produtivo, como o entrave ao caminho que leva do dinheiro ao consumo – e aqui notamos que o dinheiro representa o cruzamento de equivalências vazias que dispensa a face, o olho e a mão, talvez para resgatar aquela invisibilidade que certa leitura da economia encontrou na mão do mercado – irá se apresentar? O dinheiro faz, na prática, a equivalência dos valores de troca que, almejando dispensar da composição do mercado os valores de uso, acaba por significar equivaler trabalhos concretos e distintos com os frutos de um trabalho sem distinção, abstrato.

O poder social do dinheiro é, nessa proporção, o poder social que abdicou da sua própria materialidade, não podendo ser mais do que o puro vazio em si, pois ideologicamente arquitetado como a máxima representação das coisas humanizadas, entretanto só é capaz de fazê-lo a partir daquela mesma proporção da crescente desvalorização do mundo humano ante a valorização do mundo das coisas, que um certo nativo de Trier já anteviu em 1844.

Num tópico intitulado O dinheiro e Cristo, dos Cadernos de Paris, também de 1844, Marx capturava o sentido que o dinheiro já guardava antes da metade do século XIX: 

 

“O que antes de tudo caracteriza o dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano, social, através do qual os produtos do homem se complementam uns aos outros, esse ato mediador torna-se função de uma coisa material, externa ao homem – uma função do dinheiro [...] Através deste mediador externo, o homem, em lugar de ser ele mesmo mediador para o homem, experimenta a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com os outros como uma potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao cúmulo da servidão. Não é surpreendente que esse mediador se converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente sobre as coisas para os quais ele me serve como intermediário. Seu culto torna-se um fim em-si. Separados deste mediador os objetos perdem o seu valor. Se, primitivamente, o dinheiro só tinha valor na medida em que representava os objetos, estes, agora, só possuem valor na medida em que o representam” (2015, p. 200 – 201).

 

O que Marx (2015) descreve, retrata o papel central que a representação equivalente do valor (dinheiro), no lugar do próprio valor em-si, passa a jogar no âmbito do sociometabolismo capitalista e das suas relações cotidianamente mercantilizadas. Nos manuscritos econômico-filosóficos aparecia de maneira central o problema da alienação e da desumanização abrigada no processo, suas conexões se davam pela desvalorização desse ser-humano mercadoria proporcionalmente ao seu poder de criar mais mercadorias (coisas), seu poder criador era contraditoriamente destruidor também de si, potência autodestrutiva, como a alienação pode agora ser pensada, já que esse poder de criar mercadorias esvai-se cada vez mais de nossas mãos? A nossa destruição pode ser um prelúdio da nossa salvação ou estamos condenados infinitamente à partilhar vidas culpadas nesse “culto não expiatório” (Walter Benjamin) chamado capitalismo?

O caminho que nos leva de Marx a Debord pode ser instrutivo para entender a contemporaneidade desses deslocamentos e, em que medida, são capazes de gerar/controlar relações e objetivações sociais. Em Marx (2013) a riqueza apareceu, no século XIX, como um imenso acúmulo de mercadorias; em Debord, toda a vida se apresenta como um imenso acúmulo de espetáculos, onde quer que possa reinar as modernas condições de produção. O que a imagem representa na formulação de Debord?


As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente, apresenta a sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como invenção concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 1997, p. 13).

 

            Já dizia o ditado que o diabo vence quando convence que não existe, e o que é mais sintomático da expressão do não vivo, senão aquilo que nega justamente a vida e bloqueia nossa ominilateralidade? O que é capaz de representar esse poder desagregador? A potência do espetáculo consiste em fazer com que o mentiroso minta para si mesmo e para os demais com a convicção da verdade, não mais importando a aproximação entre a processualidade do fato e sua materialidade.

Num mundo carregado dessas “virtualidades” materiais negadas como explicar que em um só banco, o Crédit Suisse, circulou no ano de 2017, como volume de atividades em serviços financeiros, um valor 43 vezes maior que o PIB suíço (668,2 bilhões de francos), valor que perfaz 37,3% do PIB mundial (CHESNEY, 2021). Como pensar no supramencionado poder das finanças que faz circular em um só banco um valor em finanças que representa mais de um terço de tudo que mundo produziu; todavia, essa massa de dinheiro circulando, não poderá jamais realizar-se material ou produtivamente como algo útil-concreto, necessário, um valor de uso; justamente pelo fato de que seu poder consiste em não existir concretamente, mas controlando tudo que existe concretamente, seja pela política, pela abstração do Estado, pela corrupção, lavagem de dinheiro, espetacularização a vida, racismo, machismo, cultura do estupro, fake news, sexismo, misoginia, assalto ao fundo/riqueza pública, precarização do trabalho ou pela desmaterialização da realidade que leva ao grau máximo da alienação: uma objetivação aparentemente desobjetivada de toda a vida.

Puro espetáculo é a desfaçatez desse vazio do fim em-si, é sua caricatura, que agora é apresentada como algo palatável, como aquilo que é; como o beijo forçado do mendigo em paralelo às ações que, vendida na bolsa de valores, continua convertendo o corpo no templo da propriedade privada, logo todo comércio do corpo é tão válido quanto a diferença entre o trabalho do mestre-escola, que, ao trabalhar a cabeça das crianças, apenas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário, e do operário da fábrica de salsichas, cujo sentido do seu fazer é o mesmo.

     E o que faz a união do Elon Musk como “estrela” do espetaculoso-metafísico mercado financeiro, recordista de ganho diário nesse mesmo mercado, que conforme índice bloomberg billionaires chegou a somar mais 25 bilhões de dólares à sua fortuna em apenas um dia no ano de 2021, e o seu interesse em uma das redes sociais de Zuckerberg, o Twitter (onde recentemente se tornou o maior acionista individual). A fantasia de um mundo administrado pela fantasia e pelo espetáculo já não é mais uma novidade, até pelo fato do coração desse mundo de hoje ser regido pela especulação. O que conecta essa soma e esse resto?

        Testam seus algoritmos nesse imenso banquete de barbárie e vazios fiduciários que, no buraco de minhoca da nossa podridão que chafurda na lama dos corpos fáceis-descartáveis das refugiadas ucranianas, ou da mulher em surto psicótico, cujos desdobramentos desse dantesco geraram o efeito colateral da subcelebridade efêmera do momento – regada a músicas de gosto duvidoso, imagens e mensagens que o próprio algoritmo se encarrega de dar uma roupagem vendável. Aceitamos de bom grado nos colocar também à venda no momento em que compartilhamos “uma mão no volante” e outra, nem um pouco (in)visível, em tudo, menos no carinho, pois a mão é de ferro, e que representa o que liga as extremidades pela garganta do buraco de minhoca: a propriedade privada da nossa humanidade nas mãos da destrutividade do processo produtivo que continua a nos esmagar. Não pode haver graça no que celebra nossa derrota enquanto sociedade escravizada pelo fim em-si do vil metal, medido e mediado no vazio daquele espelho de sempre que nunca pode representar o que de fato eu sou, porque somos!

Referências

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

DEBORD, G. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I e III. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas da nossa época. São Paulo: Contraponto, 2021.