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Élysée Reclus

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O espetaculoso-dinheiro metafísico: notas sobre “o” mendigo e a escravização ao fim em-si regadas a Elon Musk como acionista do Twitter

                                                              Wagnervalter Dutra

                                          UNEB DCH VI/PPGELS/GPECT

 

A cada dia que passa tem-se a impressão que ficamos cada vez mais distantes de duas coisas essenciais a nós: humanidade e materialidade enquanto processo. Acredito que ambas sejam imanentes à constituição do ser social, logo um par dialético, a materialidade que nasce do metabolismo com a natureza abraça, a princípio, um trabalho produtor de sentidos e materialidades além de si – sem o qual não se habilita o para si –, passo fundante para a sociabilidade e humanização (também da natureza, como da nossa naturalização).

Olhamos ao redor e parece que estranhezas e estranhamentos são os dois ingredientes de um mal estar assustador a reger a aparente normalidade cotidiana da vida, que vai dos regados à mais aberta exploração de imagens mercantilizadas, cujos portadores da promoção desse tosco espetáculo somos nós; à impulsão de efemeridades que turvam os ares dessa “atmosfera” do “estar de pé para fazer a história”, em ambos os contextos já sabemos quem são as maiores vítimas desse moinho satânico.

O alerta de Polanyi a respeito do moinho satânico guarda, sobremodo, sua atualidade, na medida em que as relações mercantis que se fazem concretas, são portadoras de um lado, da produção dos “átomos dispensáveis” e da destruição do componente de socialidade das relações sociais; e, do outro, vê-se dispensada de prestar contas com o peso da materialidade inerente às formas de metabolismo social, pois o trabalho, componente fundante dessa interação, capaz de produzir novas materialidades e ressignificar as existentes, é, a cada passo, uma persona-coisa non grata na composição da medida do valor como tempo de trabalho socialmente necessário.

O valor é hoje um tempo destituído da substância do trabalho, um tempo sem trabalho ou a pura oferta da carcaça do tempo? (já que o trabalho representado no emprego/ocupação se esvai quase na mesma velocidade da proporção em que a cada dia, ainda que numa pandemia, cuja argumentação foi de uma economia destruída – mas para quem, Elon Musk, Jeff Bezos ou os irmãos Leman? –, mais e mais bilionários são gestados em meio ao avassalador rolo compressor da taxa decrescente do valor de uso, muito bem representado pelo aumento da velocidade cíclica requerida pelo capital financeiro).

Em que medida que esse intangível capital financeiro é capaz de nos desumanizar concretamente? Qual o tipo e a extensão do poder que o capital financeiro tem? É possível mensurá-lo? Antes de retornar às questões aludidas cabe entender que as contradições da própria acumulação capitalista, conforme apontadas por Marx (2013), impelem os capitalistas a busca por contornar os entraves no tempo de giro do capital, na ampliação do seu ciclo e nas flutuações que o capital variável poderia oferecer, atravancando assim a produção segundo a medida ancorada no ethos da lucratividade do capital.

Tocando em miúdos, a dimensão do espaço-tempo e a força de trabalho precisam se ajustar constantemente às pressões históricas intrínsecas à  da reprodução capitalista, porém, cabe lembrar, que, ao expulsar (equivalendo até mesmo precarização e desvalorização da força de trabalho) o trabalhador do processo produtivo, como o entrave ao caminho que leva do dinheiro ao consumo – e aqui notamos que o dinheiro representa o cruzamento de equivalências vazias que dispensa a face, o olho e a mão, talvez para resgatar aquela invisibilidade que certa leitura da economia encontrou na mão do mercado – irá se apresentar? O dinheiro faz, na prática, a equivalência dos valores de troca que, almejando dispensar da composição do mercado os valores de uso, acaba por significar equivaler trabalhos concretos e distintos com os frutos de um trabalho sem distinção, abstrato.

O poder social do dinheiro é, nessa proporção, o poder social que abdicou da sua própria materialidade, não podendo ser mais do que o puro vazio em si, pois ideologicamente arquitetado como a máxima representação das coisas humanizadas, entretanto só é capaz de fazê-lo a partir daquela mesma proporção da crescente desvalorização do mundo humano ante a valorização do mundo das coisas, que um certo nativo de Trier já anteviu em 1844.

Num tópico intitulado O dinheiro e Cristo, dos Cadernos de Paris, também de 1844, Marx capturava o sentido que o dinheiro já guardava antes da metade do século XIX: 

 

“O que antes de tudo caracteriza o dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano, social, através do qual os produtos do homem se complementam uns aos outros, esse ato mediador torna-se função de uma coisa material, externa ao homem – uma função do dinheiro [...] Através deste mediador externo, o homem, em lugar de ser ele mesmo mediador para o homem, experimenta a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com os outros como uma potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao cúmulo da servidão. Não é surpreendente que esse mediador se converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente sobre as coisas para os quais ele me serve como intermediário. Seu culto torna-se um fim em-si. Separados deste mediador os objetos perdem o seu valor. Se, primitivamente, o dinheiro só tinha valor na medida em que representava os objetos, estes, agora, só possuem valor na medida em que o representam” (2015, p. 200 – 201).

 

O que Marx (2015) descreve, retrata o papel central que a representação equivalente do valor (dinheiro), no lugar do próprio valor em-si, passa a jogar no âmbito do sociometabolismo capitalista e das suas relações cotidianamente mercantilizadas. Nos manuscritos econômico-filosóficos aparecia de maneira central o problema da alienação e da desumanização abrigada no processo, suas conexões se davam pela desvalorização desse ser-humano mercadoria proporcionalmente ao seu poder de criar mais mercadorias (coisas), seu poder criador era contraditoriamente destruidor também de si, potência autodestrutiva, como a alienação pode agora ser pensada, já que esse poder de criar mercadorias esvai-se cada vez mais de nossas mãos? A nossa destruição pode ser um prelúdio da nossa salvação ou estamos condenados infinitamente à partilhar vidas culpadas nesse “culto não expiatório” (Walter Benjamin) chamado capitalismo?

O caminho que nos leva de Marx a Debord pode ser instrutivo para entender a contemporaneidade desses deslocamentos e, em que medida, são capazes de gerar/controlar relações e objetivações sociais. Em Marx (2013) a riqueza apareceu, no século XIX, como um imenso acúmulo de mercadorias; em Debord, toda a vida se apresenta como um imenso acúmulo de espetáculos, onde quer que possa reinar as modernas condições de produção. O que a imagem representa na formulação de Debord?


As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente, apresenta a sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como invenção concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 1997, p. 13).

 

            Já dizia o ditado que o diabo vence quando convence que não existe, e o que é mais sintomático da expressão do não vivo, senão aquilo que nega justamente a vida e bloqueia nossa ominilateralidade? O que é capaz de representar esse poder desagregador? A potência do espetáculo consiste em fazer com que o mentiroso minta para si mesmo e para os demais com a convicção da verdade, não mais importando a aproximação entre a processualidade do fato e sua materialidade.

Num mundo carregado dessas “virtualidades” materiais negadas como explicar que em um só banco, o Crédit Suisse, circulou no ano de 2017, como volume de atividades em serviços financeiros, um valor 43 vezes maior que o PIB suíço (668,2 bilhões de francos), valor que perfaz 37,3% do PIB mundial (CHESNEY, 2021). Como pensar no supramencionado poder das finanças que faz circular em um só banco um valor em finanças que representa mais de um terço de tudo que mundo produziu; todavia, essa massa de dinheiro circulando, não poderá jamais realizar-se material ou produtivamente como algo útil-concreto, necessário, um valor de uso; justamente pelo fato de que seu poder consiste em não existir concretamente, mas controlando tudo que existe concretamente, seja pela política, pela abstração do Estado, pela corrupção, lavagem de dinheiro, espetacularização a vida, racismo, machismo, cultura do estupro, fake news, sexismo, misoginia, assalto ao fundo/riqueza pública, precarização do trabalho ou pela desmaterialização da realidade que leva ao grau máximo da alienação: uma objetivação aparentemente desobjetivada de toda a vida.

Puro espetáculo é a desfaçatez desse vazio do fim em-si, é sua caricatura, que agora é apresentada como algo palatável, como aquilo que é; como o beijo forçado do mendigo em paralelo às ações que, vendida na bolsa de valores, continua convertendo o corpo no templo da propriedade privada, logo todo comércio do corpo é tão válido quanto a diferença entre o trabalho do mestre-escola, que, ao trabalhar a cabeça das crianças, apenas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário, e do operário da fábrica de salsichas, cujo sentido do seu fazer é o mesmo.

     E o que faz a união do Elon Musk como “estrela” do espetaculoso-metafísico mercado financeiro, recordista de ganho diário nesse mesmo mercado, que conforme índice bloomberg billionaires chegou a somar mais 25 bilhões de dólares à sua fortuna em apenas um dia no ano de 2021, e o seu interesse em uma das redes sociais de Zuckerberg, o Twitter (onde recentemente se tornou o maior acionista individual). A fantasia de um mundo administrado pela fantasia e pelo espetáculo já não é mais uma novidade, até pelo fato do coração desse mundo de hoje ser regido pela especulação. O que conecta essa soma e esse resto?

        Testam seus algoritmos nesse imenso banquete de barbárie e vazios fiduciários que, no buraco de minhoca da nossa podridão que chafurda na lama dos corpos fáceis-descartáveis das refugiadas ucranianas, ou da mulher em surto psicótico, cujos desdobramentos desse dantesco geraram o efeito colateral da subcelebridade efêmera do momento – regada a músicas de gosto duvidoso, imagens e mensagens que o próprio algoritmo se encarrega de dar uma roupagem vendável. Aceitamos de bom grado nos colocar também à venda no momento em que compartilhamos “uma mão no volante” e outra, nem um pouco (in)visível, em tudo, menos no carinho, pois a mão é de ferro, e que representa o que liga as extremidades pela garganta do buraco de minhoca: a propriedade privada da nossa humanidade nas mãos da destrutividade do processo produtivo que continua a nos esmagar. Não pode haver graça no que celebra nossa derrota enquanto sociedade escravizada pelo fim em-si do vil metal, medido e mediado no vazio daquele espelho de sempre que nunca pode representar o que de fato eu sou, porque somos!

Referências

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

DEBORD, G. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I e III. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas da nossa época. São Paulo: Contraponto, 2021.

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