Wagnervalter Dutra
UNEB DCH VI/PPGELS/GPECT
A cada dia que passa tem-se a
impressão que ficamos cada vez mais distantes de duas coisas essenciais a nós:
humanidade e materialidade enquanto processo. Acredito que ambas sejam
imanentes à constituição do ser social, logo um par dialético, a materialidade
que nasce do metabolismo com a natureza abraça, a princípio, um trabalho
produtor de sentidos e materialidades além de si – sem o qual não se habilita o
para si –, passo fundante para a sociabilidade e humanização (também da
natureza, como da nossa naturalização).
Olhamos ao redor e parece que
estranhezas e estranhamentos são os dois ingredientes de um mal estar
assustador a reger a aparente normalidade cotidiana da vida, que vai dos
regados à mais aberta exploração de imagens mercantilizadas, cujos portadores
da promoção desse tosco espetáculo somos nós; à impulsão de efemeridades que
turvam os ares dessa “atmosfera” do “estar de pé para fazer a história”, em
ambos os contextos já sabemos quem são as maiores vítimas desse moinho
satânico.
O alerta de Polanyi a respeito
do moinho satânico guarda, sobremodo, sua atualidade, na medida em que as relações
mercantis que se fazem concretas, são portadoras de um lado, da produção dos
“átomos dispensáveis” e da destruição do componente de socialidade das relações
sociais; e, do outro, vê-se dispensada de prestar contas com o peso da
materialidade inerente às formas de metabolismo social, pois o trabalho,
componente fundante dessa interação, capaz de produzir novas materialidades e
ressignificar as existentes, é, a cada passo, uma persona-coisa non
grata na composição da medida do valor como tempo de trabalho socialmente
necessário.
O valor é hoje um tempo
destituído da substância do trabalho, um tempo sem trabalho ou a pura oferta da
carcaça do tempo? (já que o trabalho representado no emprego/ocupação se esvai
quase na mesma velocidade da proporção em que a cada dia, ainda que numa
pandemia, cuja argumentação foi de uma economia destruída – mas para quem, Elon
Musk, Jeff Bezos ou os irmãos Leman? –, mais e mais bilionários são gestados em
meio ao avassalador rolo compressor da taxa decrescente do valor de uso, muito
bem representado pelo aumento da velocidade cíclica requerida pelo capital
financeiro).
Em que medida que esse
intangível capital financeiro é capaz de nos desumanizar concretamente? Qual o
tipo e a extensão do poder que o capital financeiro tem? É possível mensurá-lo?
Antes de retornar às questões aludidas cabe entender que as contradições da
própria acumulação capitalista, conforme apontadas por Marx (2013), impelem os
capitalistas a busca por contornar os entraves no tempo de giro do capital, na
ampliação do seu ciclo e nas flutuações que o capital variável poderia
oferecer, atravancando assim a produção segundo a medida ancorada no ethos da
lucratividade do capital.
Tocando em miúdos, a dimensão
do espaço-tempo e a força de trabalho precisam se ajustar constantemente às
pressões históricas intrínsecas à da
reprodução capitalista, porém, cabe lembrar, que, ao expulsar (equivalendo até
mesmo precarização e desvalorização da força de trabalho) o trabalhador do
processo produtivo, como o entrave ao caminho que leva do dinheiro ao consumo –
e aqui notamos que o dinheiro representa o cruzamento de equivalências vazias
que dispensa a face, o olho e a mão, talvez para resgatar aquela invisibilidade
que certa leitura da economia encontrou na mão do mercado – irá se apresentar?
O dinheiro faz, na prática, a equivalência dos valores de troca que, almejando
dispensar da composição do mercado os valores de uso, acaba por significar
equivaler trabalhos concretos e distintos com os frutos de um trabalho sem
distinção, abstrato.
O poder social do dinheiro é,
nessa proporção, o poder social que abdicou da sua própria materialidade, não
podendo ser mais do que o puro vazio em si, pois ideologicamente arquitetado
como a máxima representação das coisas humanizadas, entretanto só é capaz de
fazê-lo a partir daquela mesma proporção da crescente desvalorização do mundo
humano ante a valorização do mundo das coisas, que um certo nativo de Trier já
anteviu em 1844.
Num tópico intitulado O dinheiro e Cristo, dos Cadernos de Paris, também de 1844, Marx capturava o sentido que o dinheiro já guardava antes da metade do século XIX:
“O que antes de tudo caracteriza o
dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade
mediadora é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano,
social, através do qual os produtos do homem se complementam uns aos outros,
esse ato mediador torna-se função de uma coisa material, externa ao
homem – uma função do dinheiro [...] Através deste mediador externo, o homem,
em lugar de ser ele mesmo mediador para o homem, experimenta a sua vontade, a
sua atividade, a sua relação com os outros como uma potência independente de si
mesmo e dos outros. Chega aqui ao cúmulo da servidão. Não é surpreendente que
esse mediador se converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente
sobre as coisas para os quais ele me serve como intermediário. Seu culto
torna-se um fim em-si. Separados deste mediador os objetos perdem o seu valor.
Se, primitivamente, o dinheiro só tinha valor na medida em que representava os
objetos, estes, agora, só possuem valor na medida em que o representam”
(2015, p. 200 – 201).
O que Marx (2015) descreve,
retrata o papel central que a representação equivalente do valor
(dinheiro), no lugar do próprio valor em-si, passa a jogar no âmbito do
sociometabolismo capitalista e das suas relações cotidianamente mercantilizadas.
Nos manuscritos econômico-filosóficos aparecia de maneira central o problema da
alienação e da desumanização abrigada no processo, suas conexões se davam pela
desvalorização desse ser-humano mercadoria proporcionalmente ao seu
poder de criar mais mercadorias (coisas), seu poder criador era
contraditoriamente destruidor também de si, potência autodestrutiva, como a
alienação pode agora ser pensada, já que esse poder de criar mercadorias
esvai-se cada vez mais de nossas mãos? A nossa destruição pode ser um prelúdio
da nossa salvação ou estamos condenados infinitamente à partilhar vidas culpadas
nesse “culto não expiatório” (Walter Benjamin) chamado capitalismo?
O caminho que nos leva de Marx
a Debord pode ser instrutivo para entender a contemporaneidade desses
deslocamentos e, em que medida, são capazes de gerar/controlar relações e objetivações
sociais. Em Marx (2013) a riqueza apareceu, no século XIX, como um imenso
acúmulo de mercadorias; em Debord, toda a vida se apresenta como um imenso
acúmulo de espetáculos, onde quer que possa reinar as modernas condições
de produção. O que a imagem representa na formulação de Debord?
As imagens que se destacaram de cada
aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida
já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente, apresenta
a sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera
contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da
imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em
geral, como invenção concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo
(DEBORD, 1997, p. 13).
Já dizia o
ditado que o diabo vence quando convence que não existe, e o que é mais
sintomático da expressão do não vivo, senão aquilo que nega justamente a vida e
bloqueia nossa ominilateralidade? O que é capaz de representar esse poder
desagregador? A potência do espetáculo consiste em fazer com que o mentiroso
minta para si mesmo e para os demais com a convicção da verdade, não mais
importando a aproximação entre a processualidade do fato e sua materialidade.
Num mundo carregado dessas “virtualidades”
materiais negadas como explicar que em um só banco, o Crédit Suisse, circulou
no ano de 2017, como volume de atividades em serviços financeiros, um valor 43
vezes maior que o PIB suíço (668,2 bilhões de francos), valor que perfaz 37,3%
do PIB mundial (CHESNEY, 2021). Como pensar no supramencionado poder das
finanças que faz circular em um só banco um valor em finanças que
representa mais de um terço de tudo que mundo produziu; todavia, essa massa de
dinheiro circulando, não poderá jamais realizar-se material ou produtivamente como
algo útil-concreto, necessário, um valor de uso; justamente pelo fato de que
seu poder consiste em não existir concretamente, mas controlando tudo que
existe concretamente, seja pela política, pela abstração do Estado, pela
corrupção, lavagem de dinheiro, espetacularização a vida, racismo, machismo,
cultura do estupro, fake news, sexismo, misoginia, assalto ao fundo/riqueza
pública, precarização do trabalho ou pela desmaterialização da realidade que
leva ao grau máximo da alienação: uma objetivação aparentemente desobjetivada
de toda a vida.
Puro espetáculo é a desfaçatez
desse vazio do fim em-si, é sua caricatura, que agora é apresentada como algo
palatável, como aquilo que é; como o beijo forçado do mendigo em paralelo às
ações que, vendida na bolsa de valores, continua convertendo o corpo no templo
da propriedade privada, logo todo comércio do corpo é tão válido quanto a
diferença entre o trabalho do mestre-escola, que, ao trabalhar a cabeça das
crianças, apenas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário, e do operário
da fábrica de salsichas, cujo sentido do seu fazer é o mesmo.
E o que
faz a união do Elon Musk como “estrela” do espetaculoso-metafísico mercado
financeiro, recordista de ganho diário nesse mesmo mercado, que conforme índice
bloomberg billionaires chegou a somar mais 25 bilhões de dólares à sua fortuna
em apenas um dia no ano de 2021, e o seu interesse em uma das redes sociais de
Zuckerberg, o Twitter (onde recentemente se tornou o maior acionista
individual). A fantasia de um mundo administrado pela fantasia e pelo
espetáculo já não é mais uma novidade, até pelo fato do coração desse mundo de
hoje ser regido pela especulação. O que conecta essa soma e esse resto?
Referências
BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.
CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2021.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I e III. São Paulo: Boitempo, 2013.
MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015.
POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas da nossa época. São Paulo: Contraponto, 2021.
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