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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sobre pares dialéticos e ouro de tolo: “e se a pedra filosofal tivessem, ainda o filósofo faltava à pedra”

Prof. Dr. Wagnervalter Dutra Júnior

UNEB/GPECT/PPGELS

 

O mito romano do deus Jano mostrava um deus com duas faces que olham em sentido oposto. As duas faces sinalizam equilíbrio, dualidade, oposição. Sol e Lua, feminino e masculino, juventude e velhice; e, contemporaneamente, poderíamos lembrar de um determinado par dialético, de um oposto em que a potência/força de um está no outro, e, também, a sua negação; são capital e trabalho.

O filósofo grego, Heráclito de Éfeso, entendia que a realidade estava em constante devir (transformação), e a sua dinâmica, como tudo mais que existe, não pode escapar a esse movimento, o que quer dizer que, desde o pré-socráticos (um determinado grupo de filósofos gregos que antecederam Sócrates, que por suas preocupações com o estabelecimento de uma cosmovisão mais ampla, ficaram conhecidos como pensadores originários), podemos inferir que as forças que estão por trás de tudo que observamos, que fazem mover o nosso cotidiano, nunca dormem; por essa razão Heráclito nos deixou a seguinte pergunta: “Como alguém escaparia, diante do que nunca se põe?”.

No mundo contemporâneo esse algo que nunca se põe, insidiosamente, parece que não está por aqui; temos a impressão de que nossas vidas se atrelam ora a forças estranhas que não controlamos, ora a uma força de vontade que pode chegar a ser capaz de moldar os nossos destinos. O tempo, sendo rei, é esse interregno entre o estranho que governa – um governo do estranho – e a força de vontade que molda o destino e, por vezes, recebe algumas doses de um estimulante denominado meritocracia, como uma pílula mágica para a dor – ou a individualização de todas as doses do que faz uma vida; essa foi a narrativa que implodiu os EUA numa crise de vício em oxicodona (vide série Dopesick, disponível no streaming Star + / Star Plus). Entre o interregno e o limbo, é possível parar o tempo e o que não se põe?

Nada pode parar o tempo, tampouco o que não descansa; todavia, a maneira como a sociedade canaliza a força criadora da humanidade é fundamental para sabermos efetivamente que tipo de sociedade queremos ser (?). Exemplifico: aproveitando-se das tragédias provocadas pelas recentes chuvas no período do carnaval na cidade de São Sebastião em São Paulo, comerciantes estavam vendendo fardos de 12 garrafas de água de 500 ml por R$ 93,00 (noventa e três reais) (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/02/agua-por-r-93-procon-pede-que-moradores-denunciem-precos-abusivos-em-cidades-atingidas-pelas-chuvas-em-sp.ghtml). 

Que sociedade somos? Por que nos pregam essas ideias: das forças estranhas que nos controlam – quem são essas forças-pessoas? – ou da força de vontade individual como definidora do destino? –, e querem nos fazer acreditar nelas? Aos que produzem a nossa percepção de tempo – ou ao menos nossa relação cultural com ele – importa que estas ideias sejam apreendidas como algo tão banal quanto o ar que se respira, ou “tão natural quanto a luz do dia”. E para que? Para que não saibamos que as forças-pessoas ocultas, que, verdadeiramente não são tão ocultas assim, e que a força de vontade que  molda o destino – por vezes também camuflada de empreendedorismo – na verdade visa retirar da lógica econômica maior – dos grandes poderes econômicos dessa sociedade – a responsabilidade por qualquer tragédia humanitária, ou mesmo pela fome que em 2022 ainda assolou 33 milhões de brasileiros e brasileiras, somando ainda 125,2 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar, conforme relatório de Rede PENSSAM (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) publicado pela Oxfam.

A relação capital versus trabalho materializa-se nessas diferentes questões, formas e relações acima aludidas; e o fundamento central de sua lógica é dobrar todas as coisas, pessoas e relações à força do dinheiro (que abriga parte da condição e do caminho para que o lucro produzido pelo conjunto da sociedade – que fica em pouquíssimas mãos, a dos burgueses – possa ser realizado e garantido). Entretanto esse mesmo dinheiro que, sob a forma de lucro, juros ou renda; flui para as mesmas mãos, só existe na exploração diária do trabalhador e na revitalização da precariedade e flexibilização do trabalho ao ponto de sintonizá-lo, à lá uberização, à forma e lógica mais perversa de funcionar do capital no âmbito de sua crise estrutural e permanente, sua forma/fração financeira.

O capital financeiro, pela via do poder social representado no dinheiro, chantageia todo o globo para funcionar orquestrado às suas vontades, desejos, necessidades e imposições; e estando seus representantes nos governos e no comando do Estado, esses capitalistas financeiros (Paulo Guedes é banqueiro, assim como os dois últimos ministros da fazenda anteriores a ele representam os bancos e o mercado financeiro – a exceção é Fernando Haddad, atual ministro) – ao lado do capital produtivo que não mais pode se dissociar das finanças –, dominam ampla e perversamente o controle do trabalho e de sua reprodução, escravizando, terceirizando, quarterizando, impondo formas precárias de trabalho parcial (part-time), jornadas de trabalho vendidas parceladamente, conforme a necessidade imediata do patrão no chão da fábrica, da escola, do comércio, do banco, da seguradora, da indústria farmacêutica ou do complexo industrial-militar; tudo para que as bolsas de valores sigam com as ações remunerando os parasitas e os mercados futuros estejam garantidos na mais perversa das novas formas (re)inventadas de explorar trabalho.

Além das formas diretas da extração e exploração do trabalho, o capital financeiro nos explora fora da nossa jornada de trabalho. E de que maneira? Um exemplo disso é a tributação, a forma como os impostos são cobrados diferentemente dos super-ricos em relação aos pobres (aqui incluídos pequeno e médio empresários). No relatório A sobrevivência do mais rico: porque é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades, publicado pela Oxfam, é possível constatar que Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, tendo uma fortuna de mais de 200 bilhões de dólares, paga impostos de pouco mais de 3%; enquanto Aber Christine, uma comerciante de Kampala, que comercializa arroz, farinha e soja, lucra 80 dólares por mês e paga 40% em impostos. Outros dados, do mesmo relatório, corroboram ainda mais o nosso argumento:

 

“• Desde 2020, o 1% mais rico amealhou quase dois terços de toda a nova riqueza – seis vezes mais do que os 7 bilhões de pessoas que compõem os 90% mais pobres da humanidade.

• As fortunas bilionárias estão aumentando em 2,7 bilhões de dólares por dia, mesmo com a inflação superando os salários de, pelo menos, 1,7 bilhão de trabalhadores – mais do que a população da Índia.

• As empresas de alimentos e energia mais do que dobraram seus lucros em 2022, pagando 257 bilhões de dólares a acionistas ricos, enquanto mais de 800 milhões de pessoas foram dormir com fome.

• Apenas 4 centavos de cada dólar de receita tributária vêm de impostos sobre o patrimônio, e metade dos bilionários do mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão aos filhos.

• Um imposto de até 5% sobre os super-ricos do mundo poderia arrecadar 1,7 trilhão de dólares por ano, o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome” (OXFAM, 2023).

Precisamos acreditar no que acreditamos para nos convencermos de que esta forma de arranjar o mundo é a única forma possível, surgida seja da vontade de Deus ou dos caminhos do destino. Todavia o mundo é o mundo dos seres humanos, construídos pelas suas próprias mãos. E não há justiça na forma como as coisas estão arranjadas nessa sociedade. A fome não poderia sequer existir nesse século XXI, é por si só um escândalo humanitário.

O capital financeiro é uma espécie de alquimia moderna, produzindo ouro artificial com a sua pedra filosofal. A pedra filosofal, como afirma Binswanger em seu livro Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe, não é,

 

“portanto, a substância da qual o ouro é feito, mas o aditivo essencial, o fermento ou catalisador que efetua a transmutação (ou transformação) do metal comum em precioso. O metal comum preferido para isso era o chumbo, associado ao planeta (e portanto ao deus) Saturno. O nome grego para Saturno é Cronos, que, por associação com a palavra Chronos (‘tempo’), sugere transitoriedade. Assim, Saturno é representado em ilustrações alquímicas por um velho com uma ampulheta  e uma foice. Relacionado a essa alquimia, o processo envolve a conversão de chumbo, metal inferior e símbolo do transitório, em ouro, metal precioso e símbolo do eterno [...] A alquimia é, portanto, uma tentativa do homem para escapar do tempo enquanto ainda está nele – seu esforço para se libertar da transitoriedade enquanto está nesta vida” (2011, p. 55).

 

Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos, algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017 ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017, correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?

A pedra filosofal é a mágica, o disfarce, o convencimento. A pedra filosofal precisava, para ser “mágica”, fazer esquecer ou obnubilar o seguinte ponto: o trabalho que tira o chumbo da terra, é o mesmo trabalho que acha o ouro real. O que sobe à superfície? O detalhe, o parcial, o brilho do chumbo transmutado, ou o ouro e tudo mais que parece também aportar fantasmagoricamente à terra, por que a aparência – ideologicamente – é mais importante do que a mão, e é justamente a mão que não é invisível que insiste em ser completamente escondida, ignorada e negada em sua existência, que perfaz esse par dialético que cria um mundo para o mal; todavia poderia fazê-lo pelo exato oposto. A verdadeira pedra filosofal de tudo é a nossa mão.

 

Referências

 

BINSWANGER, H. C. Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

“Conflitos por terra e produção artificial de sua renda no contexto da luta camponesa contra o capital: ponderações críticas”

                                                                                          Wagnervalter Dutra

                                                                                 UNEB/GPECT 

            Nosso ponto de partida para buscar esse concreto-pensado em movimento é: não existiria capital sem a conversão da terra em propriedade privada (seu controle em poucas mãos). Ao olhar para os lados nos deparamos com aquele ainda imenso acúmulo de mercadorias, que Marx (2013), ao abrir as páginas do capital sugeriu como uma cena que esboça a aparência da riqueza, ancorada nessa coleção de mercadorias acumuladas. O controle da terra se impõe como marca de nascença de todas as mercadorias, ora como a distância entre as mãos e a terra a ser cultivada, seja a distância física ou da mediação dos meios necessários para produzir; ora como a descoberta por Marx da fenda metabólica – levando em conta, inclusive, elementos da química – que Foster (2012) sinalizou quando discutiu em um artigo a ecologia da economia política de Marx.

            Em um dos tópicos do texto supramencionado, Marx e o Raubbau capitalista, Foster (2012) relembra que em seu primeiro ensaio político-econômico Marx discutiu o furto de madeira e as modificações que criminalizavam um costume antigo por parte dos camponeses. A maioria dos que estavam presos na Prússia daquele período eram camponeses presos por recolher madeira morta nas florestas. A edificação da propriedade privada obstaculizou um costume antigo e habitual dos camponeses, o que estava em tela era a proteção, recorda Marx, dos direitos de propriedade dos donos da terra (e o direito habitual dos camponeses foi completamente ignorado). O capitalismo inicia-se, recorda Foster (2012), “[...] como um sistema de usurpação da natureza e da riqueza pública” (p. 88). Ainda no debate sobre o furto de madeira, Marx (2017) detalha essa inversão ao domínio da propriedade e até ao que organicamente se afasta dela em decorrência do processo,

 

Para apropriar-se de madeira verde é preciso separá-la com violência de sua ligação orgânica. Assim como isso representa um atentado evidente contra a árvore, representa um atentado evidente contra o proprietário da árvore [...] Ademais, se a madeira cortada for furtada de um terceiro, ela é produto do proprietário. Madeira cortada já é madeira formada. A ligação natural com a propriedade foi substituída pela ligação artificial. Portanto, quem furta madeira cortada furta propriedade (MARX, 2017, p. 80 - 81).

 

  A regulação estatal-legal da propriedade privada, sob o comando da influência econômico-política da burguesia, já amplamente difundida em meados do século XIX, começou modificando os hábitos em relação à posse ou acesso aos bens da natureza, que se efetivavam de maneira comunal, no exemplo da agora metamorfoseada coleta da madeira – que estava no chão – em “furto de madeira”.

            Limitado o acesso, a máquina estatal foi redefinindo a maneira como a terra tomba sob a mediação da propriedade privada, que a inscreveu na mercantilização e, por conseguinte, no ato em que se mediu por um quantum determinado de dinheiro, passando assim a equivalente de um tempo de trabalho socialmente necessário, mesmo sem ser mercadoria, pois não é fruto do trabalho humano. E as mercadorias, convém recordar, carregam o duplo aspecto do uso e da troca. E como destaca Foster (2012) a partir de Marx:

 

Valor de uso era associado aos requisitos da produção em geral e com as relações básicas dos homens com a natureza, ou seja, as necessidades humanas fundamentais. O valor de troca, por outro lado, era orientado para a busca do lucro. Isso estabeleceu uma contradição entre a produção capitalista e a produção em geral (as condições naturais da produção) (p. 88).

 

         Foster (2012) então faz menção ao Paradoxo de Lauderdale, mais evidente nos tempos de Marx, e que se destina a demarcar essa contradição entre a produção capitalista e as condições naturais da produção. Lauderdale era um dos primeiros economistas políticos clássicos, e explicava que a riqueza pública consistia em valores de uso que sempre existiram em abundância, a exemplo do ar, da água; já as riquezas privadas baseavam-se em valores de troca e demandavam escassez. No âmbito dessas condições, sustentava ele contra o sistema, a expansão da riqueza privada só podia significar e andar de mãos dadas com a destruição da riqueza pública; ao exemplificar assevera: “se as fontes de água, que anteriormente eram livremente disponíveis, fossem monopolizadas e houvesse uma taxa nos poços, a medida de riqueza da nação seria aumentada graças ao gasto de riqueza pública” (LAUDERDALE apud FOSTER, 2012, p. 88).

            Sob a inversão das duas formas do valor (uso e troca) Marx enxergou o Paradoxo de Lauderdale como uma entre as principais contradições da produção capitalista, cujo inteiro padrão de desenvolvimento caracteriza-se pela destruição e desperdício da riqueza natural da sociedade (FOSTER, 2012). Por isso, sustentando-se no químico Liebig, Marx compreendeu que quando o capital transportava fibras, alimentos e mercadorias por longos quilômetros, significava que nutrientes como fósforo ou potássio estavam sendo retirados do solo para virar poluição nas cidades, não retornando à terra – os frutos da terra já foram capturados.

Cabe voltar a outro alerta de Marx (2013), quando ele analisa a acumulação primitiva do capital – e essa perversão da relação na forma jurídica mercantilizada que é parte dessa totalidade do processo –, ele remete ao Direito como fonte de expropriação junto ao trabalho já expropriado, como únicos meios de enriquecimento.

No processo real Marx (2013) é assertivo ao expor a violência como sua base, na economia política, mais branda, reinava o idílico. O trabalho pariu-se dessa violência, o (esse) idílico e sua forma de criar o cândido e otimista melhor dos mundos possíveis tem a economia política como pai e o Direito como progenitora. Transpondo o idílico para normatizar a vida, supostamente harmoniosa nas fantasias liberais, o Direito vela a contradição e torna-se parte da ideologia, um dos braços que a habilita com efeitos práticos, e a torna em parte interpretada como a maneira com que se balizam as soluções ou mediações de conflitos na sociedade; porém o Direito, por sua natureza espelhada na forma valor, abandonou a contradição e deitou-se com o consenso, sua ‘neutralidade’ habilita a desigualdade resignada estampada nas relações de classe.

Alienar a terra e diretamente os frutos da terra como propriedade foi o coroamento dessa chave aberta pela acumulação primitiva e geral do capital, de prender para além da propriedade o trabalho que dela já se apartou. O que a terra hoje significa ou representa capturada pela esfera financeira? E a renda se torna fictícia assim como o capital? – (este último já há certo tempo).

Parece que as coisas se desprendem do todo, da totalidade, e só existem como partes, por essa razão a financeirização nos fez acreditar que o trabalho era dispensável (a fantasia de automatização/automação do D – D’). Cabe ao capital financeiro a pergunta: é possível especular com commodities de mercados futuros, como a soja, ferro, petróleo, sem a garantia do avalista disso tudo? (A mão que semeia a terra, que minera os metais, que cava poços e extrai petróleo)?

Mas na sanha desse trabalho aparente dispensável, que potencializa a produtividade e amplia sua capacidade de produzir valor controlando as melhores condições, da produção à distribuição chegando ao consumo, e auferindo uma vantagem, traduzida em renda, por parte do portador daquele lugar privilegiado no processo, que é a terra (fonte de valor de uso). E hoje com a financeirização – especulativa – da terra e dos frutos da terra, como se desenham essas vantagens que a renda traduz (absoluta, diferencial I e II) em benefício daquele controlador imediato, se ele não mais existe diretamente, senão como personificação do capital no ramo das holdings, corporações e demais formas de conglomerar  e centralizar o capital, ou seja, nos paraísos fiscais que as fusões finanças-produção – impossíveis de dissociar como processo – não mais conseguem disfarçar? Como negociar terras indiretamente na bolsa de valores? Garantindo, virtual ou efetivamente, ainda que sob pressão especulativa, mais trabalho e mais terra, para garantir o mais-valor.

Se os latifúndios do Brasil formassem um país, por exemplo, ele seria o 12º maior território do planeta, com 2,3 milhões de km², área maior que a Arábia Saudita, é o que informa o Atlas do Agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos, publicado pela Fundação Heinrich Böll, no ano de 2018.

Baseado em dados da Oxfam, o Atlas, ao discutir quem são os donos da terra no Brasil, relaciona com o contexto da América Latina, cuja conjuntura histórica e geopolítica legou à região a pior distribuição de terras em todo o Mundo: 51,19% das terras agrícolas estão concentradas nas mãos de apenas 1% dos proprietários rurais. No caso brasileiro, ocupamos o 5º lugar no ranking de desigualdade no acesso à terra, o Brasil possui 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades superiores a mil hectares – o que soma míseros 0,91% do total de imóveis rurais.

Tal nível de concentração fundiária leva a um comportamento flutuante e especulativo aos próprios preços de alimentos (queijo / leite / arroz / feijão / café, dentre outros), na medida em que o valor de troca orienta-se pela escassez, é possível articular nesse nível de concentração o que a maior parte da superfície de um país vai produzir – soberania alimentar precisa ser discutida nessa fusão entre os proprietários fundiários locais e o capital especulativo mundializado. Não apenas o que comemos, mas o preço e a qualidade são agora controlados por essa fusão corporativa, que laçou a terra ao braço produtivo-financeirizado das grandes corporações que a controla direta ou indiretamente (produção agrícola para exportar, como a soja; produção de alimentos, mineração e controle da água. O agri-hidro-negócio é cada vez mais financeirizado). A terra e o trabalho continuam a garantir o ‘moinho satânico’ do capital.

O processo de grilagem, fruto das decorrências históricas da lei de Terras de 1850, que criou uma espécie de fundo/estoque de terras públicas, permitiu aos proprietários fundiários (coronéis), pelas suas conexões com o braço do Estado, se apropriar dessas terras. Ainda hoje, esse estoque de terras públicas, chama a atenção o Atlas, soma 10,9% da superfície agrícola do país, mas como gosta de recordar alguns geógrafos e geógrafas, porém, não existe terra sem cercas nesse país.

A farra da grilagem e falsificação de titulação de propriedade e apropriações irregulares foi de tal intensidade que chegamos ao seguinte dado, conforme o Atlas da terra Brasil 2015: o país tem registrados 38 milhões de hectares de terra a mais do que a superfície total comporta, fenômeno conhecido como beliches ‘fundiários’. O Brasil possui 453 milhões de hectares privados, correspondendo a 53% de todo o território nacional, 28% das terras privadas tem tamanhos que extrapolam 15 módulos fiscais e os 66 mil imóveis declarados como ‘grande propriedade improdutiva’ perfazem estrondosos 175,9 milhões de hectares (apud Atlas do AgronegócioI, 2018). Quem determina o que será da terra nessa configuração de forças econômico-políticas?

Dos 26 estados brasileiros mais o DF, 16 contam com mais de 80% de suas terras em propriedades privadas. Mato Grosso, vice campeão, tem 92,1% de sua área sob títulos privados e o maior índice de latifúndios (83%). A Bahia tem 91,7% de seu território sob titulação privada em 55% de grandes propriedades, acima de 15 Módulos Fiscais (ATLAS, 2018).

O Atlas do Agronegócio ainda chama atenção sob um aspecto que merece ser considerado. Grande parte da produção brasileira de commodities agrícolas está vinculada a conglomerados de estrutura verticalizada, que controlam do plantio à comercialização (a totalidade da produção direta e a produção indireta fora do seu círculo acaba tendencialmente controlada quando orbita ao redor dessa lógica). SLC agrícola (404 mil hectares), Grupo Colin/Tibra Agro (300 mil hectares), Amaggi (252 mil), Brasil Agro (177 mil), Adecoagro (164 mil), Terra Santa (156 mil), Grupo Bom Futuro (102 mil) e Odebrecht Agroindustrial (48 mil) são algumas das empresas que exploram o mercado de terras, tanto para a produção de commodities quanto para a especulação financeira. O cerrado segue ameaçado, tendo perdido área superior à Amazônia (236 ante 208 mil hec no ano de 2018). (ATLAS, 2018).

Tudo isso desenhado pela pressão do capital agro-financeirizado no campo e nas redefinições das relações de produção e trabalho – que contraditoriamente não dispensa aquela parcela que se reproduz pela forma não tipicamente capitalista, o campesinato. A agropecuária em escala industrial – financeira – é apontada como principal fator de mudança do uso da terra. Entre 2000 e 2016,

 

[...] de acordo dados da plataforma MapBiomas, o cultivo perene de grãos (como soja, milho e sorgo) passou de 7,4 milhões para 20,5 milhões de hectares, uma área duas vezes maior que Portugal; a cana de açúcar saltou de 926 mil para 2,7 milhões de hectares. Já a pecuária manteve seu reinado inconteste sobre o Cerrado, avançando de 76 milhões para 90 milhões de hectares: um território equivalente à Venezuela só de postagens” (ATLAS, p. 15) (o gado que anda em motociatas deve gostar é dessa Venezuela).

 

Convém observar que o período dessa expansão equivale ao período em que a desregulamentação neoliberal era um projeto no país, mesmo que sob a tinta do neodesenvolvimento.

A expansão é em grande parte sobre o território do Matopiba (Maranhão, tocantis, Piauí e Bahia – agronegócio), área de 400 mil km² e que engloba a última fronteira agrícola brasileira com 57% dos imóveis rurais nas mãos de grandes proprietários. Na Caatinga, 93,2% das terras são propriedades privadas (ATLAS, 2018).

Postas tais questões convém refletir sobre a renda fictícia nos termos de outro questionamento: os 38 milhões de hectares fictícios (beliches fundiários), são garantias do que senão do processo de ampliação de commodities e de especulação sobre a terra e todos os seus frutos? Na terra que não existe o trabalho deixa de ser encontrado, então a lógica D – D’ nutre e retroalimenta a terra fictícia, o que muitas vezes leva países inteiros de volta ao mapa da fome como no Brasil de Bolsonaro. A terra pode ser fictícia, porém a fome é cada vez mais real, na medida em que o processo do trabalho produtor de usos continua relegado na esfera do valor que se valoriza. Por essa razão controlam até o que comemos e como comemos, fora a produção industrial que retira componentes nutritivos do alimento para induzir ao vício e não saciar a fome.

A 3G capital, grupo controlado por brasileiros que fundaram a Ambev, hoje AbInbev, foi crescendo o seu poder de controlar a água, a terra e os frutos da terra. No início produzia cerveja e passou a comprar outras corporações/indústrias do ramo alimentício, como a Burguer King, a Heinz (que controla o grupo Kraft Foods – formou a Kraft Heiz) em parceira com o conhecido investidor Warren Buffet; controlam hoje absurdos, a partir da AbInbev, 25% (¼) das vendas mundiais de cerveja, 1 a cada 4 cervejas abertas no mundo são deles. Imagine a extensão do poder de um conglomerado dessa natureza no controle da terra e da água, basta lembrar que a fabricação de cerveja consome imenso volume de água. Ao mesmo tempo que tomamos uma cerveja estamos contribuindo com o processo da formação da fome ideal e real, é a dura face da totalidade contraditória do capital (ATLAS, 2018).

Toda a atual arquitetura institucional-estatal que pesou para capturar a terra foi traçada pelo Banco Mundial desde o começo da década de 1990, cuja política objetivava fazer-se pelos seguintes passos/programas: cadastro e georreferenciamento de imóveis rurais, privatização de terras públicas e comunitárias, titulação de posses; mercantilização da reforma agrária; o mercado de terras (Crédito Fundiário, Banco da Terra, Nossa Primeira Terra); e a integração dos camponeses ao agronegócio. Como apontam Resende e Mendonça (2004), esse foi o receituário do BM para a terra ecoando o Consenso de Washington. O que essas exigências guardavam?

Observa-se que a titulação e a formalização jurídica da propriedade estão completamente voltadas para inseri-las, como terra prometida, como valor de uso sob controle, num mercador desregulado e nas mãos das finanças especulativas. O papel que os ‘beliches fundiários’ tem a cumprir agora fazem mais sentido, todavia apenas na irracionalidade substantiva subjacente à lógica do capital.

‘Terras fictícias’ passeiam por e pressionam as terras reais de quem são os reais produtores do alimento, que também se reproduzem no âmbito contraditório de como as relações capitalista no campo brasileiro utilizaram-se das formas não diretamente capitalistas para sua garantia reprodutiva. O trabalho escravo ocupa que papel na regulação da composição orgânica do capital? Já refletimos sobre isso? Ou sua existência prova as contradições das tendências e contratendências ao decrescimento da taxa de lucro?

Tal pressão exercida sobre o campo aprofundou-se após o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016, que ao retirar Dilma Rousseff do poder abriu caminho para ampliar o domínio do rentismo e das finanças sobre a terra e toda a sociedade brasileira (quantas indústrias fechadas em decorrência dessa irracionalidade?). Por essa razão os conflitos por terra e água explodiram no último governo, representante prático da instalação real-concreta da ponte para o futuro de Temer (aquele era o programa dos burgueses e latifundiários desse país). Algo que é comum e curioso merece destaque, a saber, a usual fusão, ou melhor, personificação, dos políticos do legislativo/executivo como latifundiários. Como exemplo; só um dos integrantes da bancada do Boi (ruralista), o deputado Newton Cardoso (MDB de Minas) possui 185 mil hectares em 145 fazendas – (CASTILHO, 2012).

Dados apontam o aumento de 75% dos assassinatos no campo de 2020 para 2021 (Brasil de Fato). Em decorrência da ação de garimpeiros e outras violências como o trabalho escravo, o Jornal Correio Braziliense com base nos estudos da CPT, identificaram aumento de 1.100% das mortes em consequências desses combates.

A mineradores seguem apropriando-se das terras comuns (fundo e fecho de pasto) e das nascentes no Alto Sertão baiano, como já é conhecida a ação da Bamin, no caso do Projeto Pedra de Ferro que engloba as regiões de Caetité, Pindaí, Guanambi e adjacências.

Associado à mineração o grande capital Chinês se apropriou do controle da ferrovia oeste-leste (FIOL), construída com recursos do PAC do período Lula-Dilma, e cedida aos chineses pelo governo do Estado da Bahia pelos próximos 35 anos.

O caderno Conflitos do Campo 2021, publicados pela Comissão Pastoral da Terra, registram conflitos por terra em decorrência da pressão do capital na ocupação de terras/territórios – FIOL serve a isso também – pelos grandes empreendimentos mineradores e pela especulação do capital.

Em Caetité, por exemplo, em Curral Velho e Serragem, por conta da FIOL, 200 famílias estiveram envolvidas em conflitos. Todavia a atividade de mineração responde fundamentalmente pelos conflitos por água na região. Em Caetité registram-se nove conflitos por água (demarcados pela categoria Barragens e Açudes), e o Projeto Pedra de Ferro da Bamin (produção de minério de ferro) está presente em 7 registros do total de conflitos; uma comunidade sem o registro direto da atividade geradora do conflito e outra comunidade a tensão gerada se deu em decorrência da FIOL. O total de famílias envolvidas em conflitos por água, para que o dinheiro estranho de Luxemburgo (BAMIM) possam seguir lucrando, perfazem o total de 466 famílias (CPT, 2021).

O Caderno Conflitos do Campo ainda resgata conflitos rurais em duas séries de períodos históricos considerados, 2011/2015 e 2016/2021. Comparando os dois períodos registraram-se: incremento de 76,34% de conflitos por terra; queda de 29,63% de conflitos trabalhistas (que a reforma explica em parte, já que praticamente legaliza a escravidão, ao desregular ainda mais para o capital o âmbito formal-contratual da relação jurídica patrão-empregado); aumento de 240,40% de conflitos por água. No total de todos os conflitos houve aumento médio de 54,13%. Os assassinatos comparados entre a série histórica aludida cresceram 34,04%, com aumento de 55,08% de pessoas envolvidas e perfez um aumento de 376,97% na área (hectares) em que se registraram os conflitos (CPT, 2021).

Uma série histórica sempre crescente, acentuada pós-2016, e que em paralelo demonstra o contínuo avanço do capital no controle da terra e da água no campo brasileiro, não sem conflitos e resistências necessárias, ainda que limitadas pela atual conjuntura política e de correlação de forças.

O norte e nordeste (a periferia brasileira) seguem recordistas na concentração das ocorrências especializadas de conflitos registrados – novas fronteiras agrícolas virão, é possível presumir? –, com 47% no Norte e 31% no Nordeste. Da totalidade dos conflitos as populações e categorias mais atingidas são os indígenas, quilombolas, posseiros e sem terras com percentuais de 26%, 17%, 17% e 14%, respectivamente. Fazendeiros e empresários são os maiores geradores de ações que levam aos conflitos com 21,40% delas sob responsabilidade dos fazendeiros e 20,00% levada a cabo pelos empresários. Outro registro fundamental da extensão do controle da terra pelas forças hegemônicas do capital diz respeito aos números dos projetos de assentamentos de reforma agrária que caíram assustadoramente de um pico de 858 projetos no ano de 2005, para apenas 2 projetos em 2019. (CPT, 2021). O projeto é do controle privatista total da terra e da água, direta e indiretamente.

É preciso redesenhar e redefinir muitos rumos da luta camponesa, sobremodo depois da ativação do necrocapitalismo, que conforme Miranda é uma noção mais precisa do que necropolítica, pois essa última soa como externalidade. A luta é pela radical subversão do sociometabolismo do capital para que os frutos da terra se libertem da dupla alienação a que foram submetidos: como extensão da propriedade e como distância das mãos que o produzem. Essa é a subversão que queremos, a que destine os seres humanos a dominarem a totalidade da produção, e não o contrário, que é exatamente o que acontece cada vez mais hoje.

 

Referências

 

Atlas do agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Maureen Santos, Verena Glass, organizadoras. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2018.

CASTILHO, A. L. Partido da terra: como políticos conquistam o território brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012.

Conflitos no campo: Brasil 2021 / Centro de documentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT Nacional, 2022.

MARX, K. Os despossuídos: debates sobre a lei referente ao furto de madeira. São Paulo: Boitempo, 2017.

MIRANDA, G. Necrocapitalismo: ensaio sobre como nos matam. São Paulo: Lavrapalavra, 2021.

RESENDE, M. & MENDONÇA, M. L. Apresentação. In: MARTINS, M. D. (org.). O Banco Mundial e a terra: ofensiva e resistência na América Latina, África e Ásia. São Paulo: Viramundo, 2004.

P.S: o presente texto foi elaborado para participação da mesa com tema: conflitos por terra e produção artificial de sua renda no contexto da luta camponesa contra o capital no âmbito da VI JURA - Jornada Universitária em Defesa da Reforma Agrária, promovida pela UESB e UESC.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O espetaculoso-dinheiro metafísico: notas sobre “o” mendigo e a escravização ao fim em-si regadas a Elon Musk como acionista do Twitter

                                                              Wagnervalter Dutra

                                          UNEB DCH VI/PPGELS/GPECT

 

A cada dia que passa tem-se a impressão que ficamos cada vez mais distantes de duas coisas essenciais a nós: humanidade e materialidade enquanto processo. Acredito que ambas sejam imanentes à constituição do ser social, logo um par dialético, a materialidade que nasce do metabolismo com a natureza abraça, a princípio, um trabalho produtor de sentidos e materialidades além de si – sem o qual não se habilita o para si –, passo fundante para a sociabilidade e humanização (também da natureza, como da nossa naturalização).

Olhamos ao redor e parece que estranhezas e estranhamentos são os dois ingredientes de um mal estar assustador a reger a aparente normalidade cotidiana da vida, que vai dos regados à mais aberta exploração de imagens mercantilizadas, cujos portadores da promoção desse tosco espetáculo somos nós; à impulsão de efemeridades que turvam os ares dessa “atmosfera” do “estar de pé para fazer a história”, em ambos os contextos já sabemos quem são as maiores vítimas desse moinho satânico.

O alerta de Polanyi a respeito do moinho satânico guarda, sobremodo, sua atualidade, na medida em que as relações mercantis que se fazem concretas, são portadoras de um lado, da produção dos “átomos dispensáveis” e da destruição do componente de socialidade das relações sociais; e, do outro, vê-se dispensada de prestar contas com o peso da materialidade inerente às formas de metabolismo social, pois o trabalho, componente fundante dessa interação, capaz de produzir novas materialidades e ressignificar as existentes, é, a cada passo, uma persona-coisa non grata na composição da medida do valor como tempo de trabalho socialmente necessário.

O valor é hoje um tempo destituído da substância do trabalho, um tempo sem trabalho ou a pura oferta da carcaça do tempo? (já que o trabalho representado no emprego/ocupação se esvai quase na mesma velocidade da proporção em que a cada dia, ainda que numa pandemia, cuja argumentação foi de uma economia destruída – mas para quem, Elon Musk, Jeff Bezos ou os irmãos Leman? –, mais e mais bilionários são gestados em meio ao avassalador rolo compressor da taxa decrescente do valor de uso, muito bem representado pelo aumento da velocidade cíclica requerida pelo capital financeiro).

Em que medida que esse intangível capital financeiro é capaz de nos desumanizar concretamente? Qual o tipo e a extensão do poder que o capital financeiro tem? É possível mensurá-lo? Antes de retornar às questões aludidas cabe entender que as contradições da própria acumulação capitalista, conforme apontadas por Marx (2013), impelem os capitalistas a busca por contornar os entraves no tempo de giro do capital, na ampliação do seu ciclo e nas flutuações que o capital variável poderia oferecer, atravancando assim a produção segundo a medida ancorada no ethos da lucratividade do capital.

Tocando em miúdos, a dimensão do espaço-tempo e a força de trabalho precisam se ajustar constantemente às pressões históricas intrínsecas à  da reprodução capitalista, porém, cabe lembrar, que, ao expulsar (equivalendo até mesmo precarização e desvalorização da força de trabalho) o trabalhador do processo produtivo, como o entrave ao caminho que leva do dinheiro ao consumo – e aqui notamos que o dinheiro representa o cruzamento de equivalências vazias que dispensa a face, o olho e a mão, talvez para resgatar aquela invisibilidade que certa leitura da economia encontrou na mão do mercado – irá se apresentar? O dinheiro faz, na prática, a equivalência dos valores de troca que, almejando dispensar da composição do mercado os valores de uso, acaba por significar equivaler trabalhos concretos e distintos com os frutos de um trabalho sem distinção, abstrato.

O poder social do dinheiro é, nessa proporção, o poder social que abdicou da sua própria materialidade, não podendo ser mais do que o puro vazio em si, pois ideologicamente arquitetado como a máxima representação das coisas humanizadas, entretanto só é capaz de fazê-lo a partir daquela mesma proporção da crescente desvalorização do mundo humano ante a valorização do mundo das coisas, que um certo nativo de Trier já anteviu em 1844.

Num tópico intitulado O dinheiro e Cristo, dos Cadernos de Paris, também de 1844, Marx capturava o sentido que o dinheiro já guardava antes da metade do século XIX: 

 

“O que antes de tudo caracteriza o dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano, social, através do qual os produtos do homem se complementam uns aos outros, esse ato mediador torna-se função de uma coisa material, externa ao homem – uma função do dinheiro [...] Através deste mediador externo, o homem, em lugar de ser ele mesmo mediador para o homem, experimenta a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com os outros como uma potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao cúmulo da servidão. Não é surpreendente que esse mediador se converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente sobre as coisas para os quais ele me serve como intermediário. Seu culto torna-se um fim em-si. Separados deste mediador os objetos perdem o seu valor. Se, primitivamente, o dinheiro só tinha valor na medida em que representava os objetos, estes, agora, só possuem valor na medida em que o representam” (2015, p. 200 – 201).

 

O que Marx (2015) descreve, retrata o papel central que a representação equivalente do valor (dinheiro), no lugar do próprio valor em-si, passa a jogar no âmbito do sociometabolismo capitalista e das suas relações cotidianamente mercantilizadas. Nos manuscritos econômico-filosóficos aparecia de maneira central o problema da alienação e da desumanização abrigada no processo, suas conexões se davam pela desvalorização desse ser-humano mercadoria proporcionalmente ao seu poder de criar mais mercadorias (coisas), seu poder criador era contraditoriamente destruidor também de si, potência autodestrutiva, como a alienação pode agora ser pensada, já que esse poder de criar mercadorias esvai-se cada vez mais de nossas mãos? A nossa destruição pode ser um prelúdio da nossa salvação ou estamos condenados infinitamente à partilhar vidas culpadas nesse “culto não expiatório” (Walter Benjamin) chamado capitalismo?

O caminho que nos leva de Marx a Debord pode ser instrutivo para entender a contemporaneidade desses deslocamentos e, em que medida, são capazes de gerar/controlar relações e objetivações sociais. Em Marx (2013) a riqueza apareceu, no século XIX, como um imenso acúmulo de mercadorias; em Debord, toda a vida se apresenta como um imenso acúmulo de espetáculos, onde quer que possa reinar as modernas condições de produção. O que a imagem representa na formulação de Debord?


As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente, apresenta a sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como invenção concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 1997, p. 13).

 

            Já dizia o ditado que o diabo vence quando convence que não existe, e o que é mais sintomático da expressão do não vivo, senão aquilo que nega justamente a vida e bloqueia nossa ominilateralidade? O que é capaz de representar esse poder desagregador? A potência do espetáculo consiste em fazer com que o mentiroso minta para si mesmo e para os demais com a convicção da verdade, não mais importando a aproximação entre a processualidade do fato e sua materialidade.

Num mundo carregado dessas “virtualidades” materiais negadas como explicar que em um só banco, o Crédit Suisse, circulou no ano de 2017, como volume de atividades em serviços financeiros, um valor 43 vezes maior que o PIB suíço (668,2 bilhões de francos), valor que perfaz 37,3% do PIB mundial (CHESNEY, 2021). Como pensar no supramencionado poder das finanças que faz circular em um só banco um valor em finanças que representa mais de um terço de tudo que mundo produziu; todavia, essa massa de dinheiro circulando, não poderá jamais realizar-se material ou produtivamente como algo útil-concreto, necessário, um valor de uso; justamente pelo fato de que seu poder consiste em não existir concretamente, mas controlando tudo que existe concretamente, seja pela política, pela abstração do Estado, pela corrupção, lavagem de dinheiro, espetacularização a vida, racismo, machismo, cultura do estupro, fake news, sexismo, misoginia, assalto ao fundo/riqueza pública, precarização do trabalho ou pela desmaterialização da realidade que leva ao grau máximo da alienação: uma objetivação aparentemente desobjetivada de toda a vida.

Puro espetáculo é a desfaçatez desse vazio do fim em-si, é sua caricatura, que agora é apresentada como algo palatável, como aquilo que é; como o beijo forçado do mendigo em paralelo às ações que, vendida na bolsa de valores, continua convertendo o corpo no templo da propriedade privada, logo todo comércio do corpo é tão válido quanto a diferença entre o trabalho do mestre-escola, que, ao trabalhar a cabeça das crianças, apenas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário, e do operário da fábrica de salsichas, cujo sentido do seu fazer é o mesmo.

     E o que faz a união do Elon Musk como “estrela” do espetaculoso-metafísico mercado financeiro, recordista de ganho diário nesse mesmo mercado, que conforme índice bloomberg billionaires chegou a somar mais 25 bilhões de dólares à sua fortuna em apenas um dia no ano de 2021, e o seu interesse em uma das redes sociais de Zuckerberg, o Twitter (onde recentemente se tornou o maior acionista individual). A fantasia de um mundo administrado pela fantasia e pelo espetáculo já não é mais uma novidade, até pelo fato do coração desse mundo de hoje ser regido pela especulação. O que conecta essa soma e esse resto?

        Testam seus algoritmos nesse imenso banquete de barbárie e vazios fiduciários que, no buraco de minhoca da nossa podridão que chafurda na lama dos corpos fáceis-descartáveis das refugiadas ucranianas, ou da mulher em surto psicótico, cujos desdobramentos desse dantesco geraram o efeito colateral da subcelebridade efêmera do momento – regada a músicas de gosto duvidoso, imagens e mensagens que o próprio algoritmo se encarrega de dar uma roupagem vendável. Aceitamos de bom grado nos colocar também à venda no momento em que compartilhamos “uma mão no volante” e outra, nem um pouco (in)visível, em tudo, menos no carinho, pois a mão é de ferro, e que representa o que liga as extremidades pela garganta do buraco de minhoca: a propriedade privada da nossa humanidade nas mãos da destrutividade do processo produtivo que continua a nos esmagar. Não pode haver graça no que celebra nossa derrota enquanto sociedade escravizada pelo fim em-si do vil metal, medido e mediado no vazio daquele espelho de sempre que nunca pode representar o que de fato eu sou, porque somos!

Referências

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

DEBORD, G. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I e III. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas da nossa época. São Paulo: Contraponto, 2021.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Das armas da crítica a crítica das armas: a barbárie bate à nossa porta como o abismo que te decifra e te devora1.

Wagnervalter Dutra Júnior

UNEB/PPGELS/GPECT

 

Introdução: apontamentos iniciais

 

Na Introdução da Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Marx estrutura um conjunto de reflexões que objetivava combater as vertentes idealistas e metafísicas de matriz hegeliana, que compunham expressiva parte do sentido filosófico de naturalização da ordem do capital, ou a sua mais completa fetichização expressa na inexorabilidade da marcha do oriente ao ocidente, construída pela leitura da filosofia da história de Hegel; não à toa inicia com o seguinte argumento: “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”. O que estaria por trás de uma afirmação dessa envergadura?

Quando observamos o mundo de hoje, o mundo da dessubstancialização do humano, dos seres humanos não rentáveis – como alerta Robert Kurz –; percebemos uma profusão de concepções irracionalistas e atitudes que convertem os problemas estruturais da lógica acumulativa, em problemas passíveis de resolução apenas na esfera do indivíduo, invertem o pólo de onde a realidade emerge concretamente, e, assim, a compreensão da gênese e condição histórica da humanidade lhe é roubada, a realidade passa a ser algo sempre apriorístico, sempre dado, nesse jogo de cartas marcadas o palco do acontecer salvífico (BENJAMIN, 2013) é o máximo que podemos atingir; os joelhos dobram ante a ilusão de um mundo sempre adiado e ante o bezerro de ouro (o Deus Mamon). Tais concepções não passam a limpo, não refletem sobre o crivo do que nos produz enquanto humanos, enquanto famintos, pobres, miseráveis, descartáveis e supérfluos ao funcionamento de uma sociedade. Também não esclarece como se produz os ricos (burgueses). Quais as implicações dessa forma de produzir uma determinada concepção de mundo invertida (às avessas)?

Um mundo que perde a sua própria essência (sua humanidade) e onde se assiste a tudo isso impassível, quase que num estágio de coma semi-profundo? Um outro sono dogmático? Outra revolução copernicana nos rumos da filosofia? Que misérias enfrentamos, ou nunca enfrentamos, ou temos medo de enfrentar? Por quê o medo de se olhar no espelho e conseguir um lapso reflexo de humanidade, se assustar com isso, aumentar o medo; por nunca experimentar a efetividade da partilha de um mundo que se olha e se vê, completo, por inteiro, demasiado e emancipadamente humano?

Após 500 anos de exploração (neo)colonial/imperialista, um grupo de indígenas do alto da Sierra Maestra se insurgiu, e perguntou ao mundo quem deveria pedir perdão após cinco séculos em que os indígenas foram expropriados de tudo. “De que temos que pedir perdão? Quem vai nos perdoar? De não morrermos de fome? De não nos calar em nossa miséria? De ter nos levantado em arma, quando encontramos todos os outros caminhos fechados? De que temos que pedir perdão? De não nos render? De não nos vender? De não nos trair? Quem tem de pedir perdão? E quem pode outorga-lo?”

O que mais esse mundo nos tira, além da substância viva (nossa vitalidade) na gangorra vampiresca que suga trabalho vivo, completamente escravizada por um mundo em que poucos, muito poucos, desfrutam da riqueza socialmente produzida e goza desse mundo, ao passo que os demais vivem uma imensa correria tentando alcançar o dia seguinte, e ter pelo menos uma casa antes de morrer.

Acrescente à conta do ultraliberal – old chicago boy – Paulo Guedes a fome que retorna, a pobreza que aumenta, a miséria, o desemprego e a nossa insistência em viver demais e atrapalhar o assalto ao fundo público via previdência social (“deficitária”). Qual a razão de nos deixar levar por palavras aparentemente bonitas (como reforma, austeridade, Estado mínimo, sanear contas públicas, enxugar a máquina – e por que metáforas tão “de casa”?), expressas no som da grave voz de William Bonner no jornal das oito?

O que nos tornou/a escravos (a propriedade privada dos meios de produção e o subsequente óbvio controle do trabalho/terra – do metabolismo societal), foi o que nos afastou historicamente de qualquer possibilidade de existir fora das mãos dos mercadores da ganância, do dinheiro, do intercâmbio do trabalho alheio que saltou da esfera do controle imediato e viu seu patrão pulverizado em holdings, spreads bancários e a mais pura especulação na Bolsa de Valores (seja de Tokyo ou Nova York – ao capital muito pouco importa); todavia, sem o trabalho e o trabalhador tudo se transforma num grande 1929 a lá Caverna do Dragão: sem saída.

 

Armas da crítica e crítica das armas: considerações sobre o humano às avessas

 

Refletindo sobre essa dimensão da materialidade das armas e da crítica, das armas da crítica e da crítica das armas (não é, jamais, uma questão do puro pensar, da crítica especulativa, do criticismo kantiano – o problema da razão ou da cognoscibilidade do conhecimento –, da crítica apenas como denúncia); a crítica2 é a suprassunção do mundo (da realidade concreta) que se enfrenta, que é o seu objeto; suprassumir a sua materialidade e as decorrentes relações institucionais e imateriais (autonomizadas em aparência, como o treino de um coletivo que não percebeu que “a religião é um suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma” MARX, 2005), não só a revolução é um ato histórico, o pensar também é um ato histórico antes de ser um ato mental.

A nossa imaginação é material, e a matéria é nossa imaginação, há um tecido/tessitura do mundo ancorada no que decorre dos nossos pôres teleológicos primários – necessidade de viver até o outro dia –, para isso comemos, construímos casas, bebemos, nos educamos, aprendemos, tudo isso quando ao interagir com a natureza através do trabalho produzimos comida real que enche nossa barriga de matéria que alimenta, para que depois caiba um pouco de fantasia, mas para continua sendo preciso o dia seguinte. Tudo que nos “educa” – no sentido de treinar e adestrar – para não percebemos que o ser humano não “é um ser abstrato, acocorado fora do mundo” (MARX, 2005), depõe contra a compreensão do profundo caráter histórico de tudo que existe, inclusive da natureza que se historiciza no processo de nossa constituição sociometabólica.

O fetichismo da mercadoria, a alienação, a ideologia cimentam-se num profundo escamoteamento das nossas misérias reais – um mundo refém do movimento autovalorativo do valor, do lucro –, nos tornando cúmplices, e até talvez parceiros, da própria barbárie que nos assola. Barbárie se tivermos sorte? Nem sei se cabe mais a palavra sorte em algum lugar desse mundo, que virou um grande campo de concentração, como um zoológico humano, à vista de um grande cassino (como parte do pacote turístico inclui assistir de camarote-cassino esse espetáculo chamado trabalhador-pobre-miserável-lumpesinato) de onde os burgueses reais – aqueles que podem bancar uma volta de foguete na atmosfera terrestre no mesmo momento em que mais de 60% dos lares brasileiros são atingidos por algum tipo de insegurança alimentar – apreciam a bela vista, garantia de que seus lucros continuem destruindo o mesmo metabolismo que possibilita nossa autocriação, em sentido ontologicamente amplo; contudo faz-se, pelas mãos da ideologia, algo distante, ilusório, mágico; uma força estranha que a tudo governa.

Essa força estranha, fonte “mágica” da riqueza, que, por exemplo, o papel-moeda representa e procura esconder no seu desvelamento transcendental é a perversa inversão que no plano aparente nos faz crer que é a Moeda que faz o ser humano (riqueza), e não o ser humano (riqueza) que faz a Moeda.

A naturalização poderia encontrar somente esse caminho suposto mediante o "natural" presumido da história no bojo da ideologia capitalista: ela esconde a perversão da igualdade jurídica substanciada na desigualdade econômica da divinizada/mágica/transcendental propriedade privada dos meios de produção, que condenou milhões à venda da sua força de trabalho como única forma de sobreviver, quando os poucos escondidos por trás da Moeda n° 1 dizem ser natural essa condenação (DUTRA JR, 2015)

            A busca incessante da Moeda n° 1 pelos personagens do desenho de Walt Disney, Tio Patinhas, aborda a centralidade que a equivalência universal representada pelo dinheiro e o fetiche da riqueza abstrata dada pela posse da primeira Moeda exercem no conjunto da sociabilidade fundada no valor de troca e no mercado. A metáfora desenvolvida por Martins em seu texto: Tio Patinhas no centro do universo; exemplifica como as relações sociais estão fundadas na forma alienada de conceber o dinheiro em si com a posse da riqueza, eliminando o trabalho da constituição da produção e riqueza social, e condenando os seres humanos na busca sem sentido do fim em si da lógica autovalorativa do capital. Ver: MARTINS, J. S. Tio Patinhas no centro do universo. In: MARTINS, J. S. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, Wright Mills e Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto, 2014; p. 93 – 103” (DUTRA JR., 2015).

            Nesse contexto o campo da barbárie é o campo da velocidade (dos muitos tempos de vida sobrepostos e dominados pelos tempos de giro dos capitais individuais que se escondem enquanto capital social total), que Milan Kundera vê como a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem, o ser humano dá velozes passos para a barbárie, assim expresso em algumas linhas do próprio Kundera:

 

“Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre me suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase” (2011, p. 7 – 8).

 

            Enquanto isso, em Patópolis, o segredo da ordem não é ter, permanece sendo esperar ter, quantas coisas esperamos ter? (e quanto concentramos nessa esfera irrealizável?). Os mesmos dramas imensos que nos cercam no cotidiano das outras Patópolis (independentes de serem médias / pequenas); somos seres mutilados, porque materialmente ter nos priva de humanamente ser (MARTINS, 2014); essa é a marca de toda uma época, de uma forma histórica específica de experiência do espaço-tempo e de sua produção; uma experiência partida, negada.

Walter Benjamin (2012), em seu texto experiência e pobreza aborda o significado da experiência num mundo em crise, no contexto da Primeira Grande Guerra. A princípio fala da parábola de um velho que no seu leito de morte revela aos filhos a existência de um tesouro oculto em seus vinhedos. Ao cavar nas proximidades os filhos não encontram o menor vestígio desse tesouro. Chegado o outono, todavia, as vinhas produziram mais do que qualquer outra da região; depois os filhos compreenderam que o pai transmitira a eles uma certa experiência: “a felicidade não está no ouro, mas no trabalho duro” (p. 123). A experiência equivalia à comunicação pelos mais velhos aos mais jovens sobre inúmeras questões da vida e da existência. Mas se questiona sobre o alcance dessa mesma experiência nos dias de 1933, quando escreveu o texto: “Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam narrar algo direito? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?” (p. 123), dentre outras questões.

A geração de 1914 – 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história universal, com isso, ressalta Benjamin (2012), a forma clara com que é possível perceber que as experiências estão em baixa; na época da guerra era notável que os combatentes retornavam silenciosos dos campos de batalha, mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos; inclusive os póstumos livros de guerra da década seguinte não conseguiram trazer à tona experiências transmissíveis de boca em boca. Complementa com a ressalva de que nunca houvera existido “experiências mais radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes [...]” e isso tudo envolto num “[...] centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras [...]” e lá “[...] estava o frágil e minúsculo corpo humano” (124). Que enfrenta filas para receberem ossos doados por açougueiros em Cuiabá, conforme amplamente noticiado em rede nacional, ou mesmo comprar arroz e feijão quebrados (sobra); a inflação é dessas experiências que a hegemonia e o ethos ideológico dominante conseguiram domar como experiência não comunicada, por que natural no âmbito da economia que parece sempre ter vontade própria ou mesmo vida própria, saltando aos olhos nas falas dos âncoras do jornalismo econômico de forma geral – o mercado sempre é muito mais bem tratado que qualquer dos convidados na Globo News.

O desenvolvimento do capital, impulsionado pela guerra, atou indelevelmente a técnica, sob o controle das “forças estranhas” do tempo de trabalho socialmente necessário ao destino da humanidade. Por essa razão é conveniente expressar mais algumas ideias de Benjamin a esse respeito:

 

“Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre – ou melhor, sobre – as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritismo, é o reverso dessa miséria. Pois não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização [...] Aqui porém revela-se com toda clareza que nossa pobreza de experiência é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e visões de mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, confessemos: essa pobreza não é apenas pobreza em experiências privadas, mas em experiência da humanidade em geral. Surge assim uma nova barbárie [...] Ela [essa nova barbárie] o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita e nem para a esquerda” (BENJAMIN, 2012, p. 124 – 125)

 

            Esse contexto nos torna tão resignados na nossa própria miséria, na nossa própria barbárie, que fica difícil compreender, ou mesmo expressar, as bases materiais que as produzem, pois ao final, a narrativa desse mundo é sempre o fim da história, o horizonte inegociável que se fecha; contudo o fardo do nosso tempo histórico permanece intocado.

As potências nascentes de um mundo fundado sob a capital exigiram desde cedo sacrifícios aos que, historicamente, não participariam do Banquete prometido pelo progresso à frente, apesar da impossibilidade de realização do mesmo sem os “não participantes”.

Uma passagem do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, traz um diálogo entre o bispo D. Bienvenu e o convencionalista G. sobre acontecimentos e contextos históricos referentes aos desdobramentos da Revolução Francesa, onde G. recorda a tragédia de uma mãe no século XVII. Enquanto amamentava o filho é amarrada ao pelourinho, nua até a cintura, com o seio cheio de leite e o coração cheio de angústia; a criança mantida à distância, com fome empalidece, vendo cair o leite sem alimentá-la, agonizava; o carrasco diz à mulher, ao tempo mãe e lactante: - Abjura! -, oferecendo-lhe escolha entre a morte da criança e a morte da sua consciência. G. retorna o olhar para o bispo e questiona: “Que diz o senhor desse suplício de Tântalo aplicado a uma mãe?” (HUGO, 2017, p. 90 – 91).

Tântalo foi um lendário rei da Líbia, condenado por Zeus a ficar eternamente atado a uma árvore carregada de frutos, no meio de um lago limpídissimo, sem poder matar a própria fome e sede (HUGO, 2017).

O dilema enfrentado pela mãe e a analogia com a condenação de Tântalo oferece pouca escolha, em ambas as situações a morte de algo se faz sempre certa; pela fome, pela sede, pelo envenenamento, pela austeridade, pelo desemprego, pela perda sistemática de direitos e proteção social, pelo Estado mínimo ou pela consciência.

A vista do horizonte é uma casa, um enclave, no caminho do progresso; o prenuncio de uma realização que não oferece nada além da escravidão sísifica – referência ao mito grego de Sísifo, condenado a empurrar por toda a existência uma pedra ao topo da montanha que ao atingir o cume rolava abaixo recomeçando o trabalho.

A “escravidão sísifica” – valorização do valor – prendeu os homens de um determinado tempo histórico – o tempo do sociometabolismo do capital – ao poder estranho de produzir algo cuja utilidade não se fazia presente de imediato. Esse poder, inaugurado como riqueza para os novos tempos, pôs abaixo aquela casa na linha do horizonte, e o casal que a habitava – Filemon e Baucis, personagens de Fausto de Goethe – sucumbe ao que estranhamente convenciona-se entender por progresso, elimina-se entraves, que são, também, seres humanos; com eles a criança, o leite, a consciência e a utilidade do humano agora convertida na inutilidade da forma valor, a riqueza que não mais alimenta sem a mediação de uma equivalência geral do trabalho humano abstrato, que, todavia, não se encontra no trabalho do outro como concreto da necessidade e da vida.

Refletindo a história do pensamento econômico, Heilbroner (1996) reconhece que o mercado funda a nova organização da sociedade sob o capital, na medida em que o universaliza. A aposta do capital é alta: “O velho brado repercuta: Rende obediência à força bruta! E se lhe obstares a investida, Arrisca o teto, os bens e a vida” (GOETHE, 2011, p. 575).

Essa aposta representa uma condição a se reproduzir historicamente, condição sem a qual o capital não pode existir. A separação entre os trabalhadores, agora livres na medida das necessidades móveis do capital no contexto dos cercamentos – acumulação primitiva –, e os meios de produção. Condição que relega aos mesmos a satisfação das suas necessidades em mãos estranhas, agora dependentes do acesso aos meios de produção controlados pelos capitalistas.

A expressão ideal da relação material de base para o capital foi traduzida por Heilbroner (1996) na forma sob a qual a economia encontra-se com sua parteira, balbuciada na filosofia moral de Adam Smith, cuja mensagem pôs-se límpida: “A nova filosofia nasceu com um novo problema: como manter os pobres, pobres” (p. 41).

 

Derradeiras palavras (in)conclusivas

 

Soma de nossas desumanidades que não se comunicam, pois perderam a capacidade de enxergar o outro como humano, pois isso também lhe foi negado, a barbárie do capital funda-se nessa desumanidade completamente naturalizada, e as profundas decorrências desse processo (um mundo em que como diriam Cristhian Dunker e Vladimir Safatle o sofrimento psíquico é o próprio neoliberalismo).

Mas nessa barbárie cabe tanto os desfiles militares e espetáculos esdrúxulos quanto possíveis forem para garantir, por trimestre, uma das maiores séries históricas de lucratividade dos 4 maiores bancos brasileiros que negociam ações na Bolsa de Valores – Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander –, o crescimento da lucratividade atingiu 46,4% em relação ao mesmo período do ano passado, totalizando R$ 21,8 bilhões de reais3.

A crítica radical será sempre necessária num mundo como esse, para dirimir todas as fantasmagorias e externalidades metafísicas, e começar a enfrentar o estado de coisas atual com duas concepções que Marx desenvolve no texto citado de início: “a raiz do ser humano é o próprio ser humano” e que “a teoria se converta em força material ao se apoderar das massas”.

 

Notas

 

1. Texto elaborado para mediação na programação de abertura do semestre letivo 2021.2 vinculado à semana de integração do Departamento de Ciências Humanas – DCH VI da UNEB campus Caetité/BA. O tema geral proposto foi: Das armas da crítica a crítica das armas: a importância do pensamento crítico na luta contra a barbárie, tendo como palestrante a Profa. Dra. Alexandrina Luz Conceição UFS/PPGEO/GPECT.

2. Em 1843, Marx escreve algumas cartas ao seu editor nos Anais Alemães, Arnold Ruge, com quem ele planeja a edição de uma revista franco-alemã demonstrara como Marx entendia o que era a crítica, já nos primeiros anos de sua profícua produção bibliográfica: “a vantagem da nova tendência é justamente a de que não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar o novo mundo a partir da crítica do antigo [...] A filosofia se tornou mundana e a prova cabal disso é que a própria consciência filosófica foi arrastada para dentro da agonia da batalha, e isso não só exteriormente, mas também interiormente. Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não seja assunto nosso, tanto mais líquido e certo é o que atualmente temos de realizar; refiro-me à crítica inescrupulosa da realidade dada; inescrupulosa tanto no sentido de que a crítica não pode temer os seus próprios resultados quanto no sentido de que não pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos [...]” (MARX apud BENSÄID, 2010, p. 10). O prenúncio do que seria a medida da efetiva crítica marxiana delineia-se – crítica compromissada com a radicalidade de todos os fatos concretos e com a superação de um mundo que é a imensa prisão para a maioria dos que o habitam, a crítica teórico-prática, a crítica centrada na totalidade, a crítica que não cruza os braços diante do mundo, tampouco o produz pela palavra – como os Crítico críticos; a crítica que só é crítica por se posicionar e lutar pela superação da ordem, da filosofia, da agonia da batalha e desse mundo que precisa de ilusões.

3. https://www.poder360.com.br/economia/maiores-bancos-lucram-r-218-bilhoes-no-1o-trimestre/.

 

Referências

 

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8º Ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v. 1).

 

DUTRA JR, W. O (des)conceito de Homem na leitura do espaço-tempo  postulado na Geografia Humana: Os enigmas de uma Geografia Humana sem Homens. 2015. 274 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2015.

 

GOETHE, J. W. Fausto: uma tragédia – segunda parte. São Paulo: Editora 34, 2011.

 

HEILBRONER, R. História do pensamento econômico. São Paulo, 1996 (Col. Os Economistas).

 

HUGO, V. Os miseráveis. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

 

 

KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

MARTINS, J. S. Tio Patinhas no centro do universo. In: MARTINS, J. S. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto, 2014.

 

MARX, K. Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005 (p. 145 – 156).

 

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006.

 

MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

 

MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. 2º Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.