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Élysée Reclus

quinta-feira, 9 de maio de 2024

A natureza nas ruínas da (des)humanidade: reflexões sobre velocidade, lentidão e a morte-vida do corpo orgânico-inorgânico do ser humano*

                                                             Wagnervalter Dutra Junior
                                                                    UNEB/PPGELS - GPECT


“Quem anda a pé sente o peso do próprio corpo”

 

O capital é um reino em ruínas e de ruínas que chafurdam a olho nu, todavia são ruínas vivas, cuja pulsão, tal e qual estivesse a sociedade respirando por aparelhos – como está –, só poderia ser mantida viva caso o aparelho estivesse ininterruptamente preso à tomada, o anjo da história é sua testemunha. E o que essa visão angelical nos informa?

Com o semblante voltado ao passado, os olhos escancarados, queixo caído e asas abertas, o anjo vê, no lugar em que mortais enxergam uma cadeia de acontecimento, tão-somente uma catástrofe única – (onde está essa catástrofe única e qual a geografia dela?) Ou as catástrofes também são mera expressão da peste epistêmico-eurocêntrica, seja lá o que isso queira significar?) – a acumular incansavelmente sob seus pés um amontoado de ruína sob ruína (palco também é ruína, pois remete a maneira como a história – e o espaço – emergem no drama barroco alemão: o acontecer natural é salvação; e que curiosamente remete ao a priori de um espaço que em Kant nasce sem substância social).

Ruínas que por nós não são vistas, pois a estética é também ideologia. Pensemos por exemplo: ao experimentar um hotel 5 ou 6 estrelas em Dubai, em que momento você terá tempo de pensar em quantos trabalhadores morreram ao construir a mais espetacular e moderna das ruínas, como a megacidade que planejam construir no deserto? A ruína acumulada reflete proporcionalmente a aceleração do tempo de giro do capital, ruína é velocidade (o que acelera desloca)? E o que se desloca?

Nas páginas iniciais do livro A lentidão, o escritor tcheco Milan Kundera começa por uma reflexão sobre o que poderíamos chamar de uma espécie de produção deliberada do desuso/influxo da lentidão no cotidiano da vida moderna. Ao narrar uma viagem que faz de carro pelo interior da França, surgida da vontade dele e de sua companheira de passar a tarde e à noite num castelo. No interior do referido país, afirma, é comum encontrar castelos que se transformaram em hotéis.

Dirigindo-se a um desses castelos observou pelo retrovisor um carro vindo logo atrás: “a pequena luz à esquerda pisca e o carro todo emite ondas de impaciência” (p. 7) e o motorista espreita o momento da ultrapassagem como um abutre a espreitar sua carcaça (Kundera, 2011), ou aquele conhecido vampiro que suga o sangue vital da força viva do mundo (trabalho), cuspindo coisas e coisificações aqui e alhures.

Escuta com atenção a sua companheira citar as estatísticas de acidentes nas estradas da França, observando ainda as ações desses mesmos motoristas, ela prossegue: “reparem bem nesses loucos em volta de nós. São exatamente os mesmos que se comportam com uma prudência extraordinária quando uma senhora de idade é assaltada diante deles na rua. Como podem não ter medo quando estão dirigindo” (Kundera, 2011, p. 7). Ao pensar numa possível resposta ele elabora:

 

[...] o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento do seu voo, agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado como do futuro; e arrancado da continuidade do tempo [que possua substância]; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado não sabe nada de sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer (Kundera, 2011, p. 7).

 

            Compreendendo a partir da propriedade privada edificando-se pela centralidade social das mediações alienantes e estranhadas de segunda ordem do metabolismo social, cabe a questão: quem tem medo do futuro e quem pode tê-lo? Até o medo do futuro é mercantilizado como propriedade privada, pelo que o presente nega, pelo que rejeita. O medo se põe diante de todos, porém experimenta-se qualitativamente distinto no âmbito da sociabilidade burguesa.

Por um lado, o paralisante medo do futuro é o medo da realização/objetivação no próprio presente da vida que se esvai pela negação do trabalho vivo e das necessidades concretas, expressas pelo que venho chamando de implosão do valor de uso; apenas possível de se realizar como riqueza abstrata, como a destrutividade que se tornou a marca de toda mercadoria, estas, desde sempre inclusive, nascem de uma destrutividade que se amplia na esteira do desenvolvimento histórico da lei geral da acumulação. A mercadoria compõe-se mais de destruição, no seu atual processo produtivo geral, do que de criação, com a intensificação da contradição capital versus trabalho, nos termos da reestruturação produtiva, da indústria 4.0 ou das finanças mundializadas.

Basta refletir sobre o envenenamento da água, da comida, do ar; o peso que o marketing tem no custo da mercadoria, auxiliado obviamente pelo fetichismo mercantil, dentre outros. Convém referenciar dois autores que tocam, cada qual à sua maneira crítica, nessa face da destrutividade da produção capitalista e das mercadorias. O livro Para Além do Capital, de István Mészáros, explora amplamente os contornos dessa destrutividade passando pela obsolescência planejada ao complexo militar-industrial, dentre outras questões relativas ao sociometabolismo do capital; ao passo que em A ecologia da economia política marxista, John Bellamy Foster explora os custos cada vez mais amplos das embalagens ao passo que o trabalho vivo distancia-se do conteúdo que a mesma embalagem traz; ainda faz referência, por exemplo, ao custo em relação ao PIB norte americano de uma simples mudança de modelo de automóvel de um ano para o outro, nos seus termos: “Eles estimaram que as mudanças de modelos automobilísticos sozinhas custaram ao país 2,5% do PIB” (Foster, p. 96). Os esforços de venda e produção fundem-se a ponto de se tornarem indistinguíveis, ainda pondera Foster (2012).

Nos rastros da mercadoria se encontra a unidade contraditória da destruição da humanidade do humano e da natureza, ainda que a premissa marxiana de se estar de pé para fazer história siga inexorável como lei fundamental na compreensão histórica, pois daqui o metabolismo trabalho e natureza estruturam o ser social a partir de múltiplas determinações.

Sendo assim é o medo do futuro-presente para a classe trabalhadora – pois se vê ameaçada pelo assombro do futuro ser o seu exato presente – experimentado concretamente como miséria, descartabilidade, desemprego, precarização, fome, trabalho escravo, agronegócio, comodities, soja, insegurança alimentar, ou mesmo o aumento do número de câncer por conta da imposição da lógica privada dos grandes grupos corporativos que controlam e vendem a comida envenenada que comemos; imposições dos sistemas agroalimentares que rompem barreiras naturais e nos brinda com pandemias (ver livro Pandemia e agronegócio), nunca é demais lembrar uma informação que Mike Davis nos traz no livro O monstro bate à nossa porta: a de que uma mega fazenda de suínos em Milford V Valey  produzia mais esgoto que a cidade de Los Angeles, que conta contava em 2021 com 3 milhões e 800 mil habitantes.

Desconsiderando o absoluto dos números em si, parece que estamos produzindo menos dejetos do que nosso próprio alimento produz de dejetos, ao menos nesse exemplo, o que leva a outra questão: como não ser meramente destrutivo – até em sentido ontológico – se se produz o dejeto como mercadoria, afinal dois dejetos se encontram na fazenda e dão as mãos para depois de uma escala no frigorífico aportar em alguma prateleira de supermercado. A natureza vendida como carne de porco segura as mãos do trabalho explorado para produzi-lo, este último retorna à cidade como consumidor – que geneticamente é trabalho alienado e fetichizado nas duas pontas do metabolismo social –, o dejeto que não se reconhece enquanto tal.

Seria a esfinge da ruína moderna os dejetos que se encontram não se reconhecendo? E a ruína como o espaço moderno (e arcaico) a lhe abrigar, a lhe viabilizar o desenvolvimento desigual e combinado, que reequilibra a balança da exploração e expropriação do trabalho e da natureza em prol de quem também os detém como propriedade privada. Ontologicamente apenas o controle privado de ambas as pontas que realiza primariamente o valor de uso – trabalho e natureza – é capaz de efetivar a sociabilidade hegemônica da fratura metabólica que o capital opera quando converte em propriedade privada o que nos faz humanos (refiro-me novamente ao que, por falta de melhor expressão, chamo por hora de implosão do uso).

Por outro e mesmo lado, o medo do futuro-presente (ao revés do trabalhador) está na perda da condição de ser (da) classe dominante no presente, é o medo de que o futuro não repita o atual status quo operacionalizado como presente eternizando; sem o menor compromisso com o que esteja fora da órbita da valorização do valor.

Este lado do medo visa transformar a aventura do valor em algo que pode pretender deixar o chão real (Terra), para se lançar em aventuras espaciais e colonização de novos planetas. As pretensões da empresa SpaceX de Elon Musk dão a real dimensão do alcance da alienação por parte do capital, cuja autonomização aparente da esfera financeira faz com que toda a materialidade possível que, trabalhada pelas mãos humanas, vira mercadoria, não se faça mais necessária – a natureza recebe sua certidão de puro valor fetichizado –, a velocidade na lógica da acumulação do capital é do mesmo grau da violenta  ilusão quanto uma possível materialidade dispensável à valorização do valor – ou ao menos desobrigada da matéria no sonho metafísico perfeito.

Compreendendo a negação da lentidão, Milan Kundera (2011), tornando a refletir sobre a pressa que mesmo não sendo dele, acabou por lhe impor ao menos um incômodo com aquele veículo em seu retrovisor, entendeu tal velocidade como a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao ser humano,

 

Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora de jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase [...] Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase (Kundera, 2011, p. 7 – 8).

 

            Na técnica a chama do êxtase é o trabalho estranhado como sua autorrealização, como algo entre um quase autômato que não se emancipa das mãos que liga a tomada, mas até lá suga mais energia do que é capaz de produzir. Sobre essa velocidade, também apontam Conceição e Dutra Jr. (2023),

 

[...] uma velocidade que organizou a potência do trabalho para fins determinados, todavia distantes das necessidades humanas imediatas (uma espécie de sequestro da centralidade do uso). A máxima velocidade possível de transformação da natureza/terra em objetos que podem ser vendidos no mercado, que se gesta da condição sine qua non de controle da terra por parte dos burgueses nascentes [...] (p. 259)

 

O que preocupa Kundera (2011) em sua crítica é o desaparecimento de uma sociabilidade onde caiba a lentidão e os riscos implícitos nesse caminho – pululam os riscos de que continue a reduzirem-se os possíveis melhores abrigos para o valor de uso nessa interdição da lentidão. Por tal razão pergunta:

 

Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza (2011, p. 8)

 

            A lentidão permite ao corpo sentir-se a si mesmo, a velocidade faz com que esse mesmo corpo volte a desprender-se de si. A velocidade que destrói objetiva e subjetivamente o trabalho (força vital e humanidade) e a natureza requeridas pela acumulação, prova-se insustentável ante o próprio tempo dos ciclos naturais em sua recuperação bio-físico-química; não há tempo para que o corpo inorgânico do ser humano se recupere, ao passo que seu corpo orgânico é cada vez mais pressionado a alargar-se aos limites da exaustão; não é à toa que pílulas mágicas da recuperação física e mental divide o lócus com os corpos-escombros destruídos pela irracionalidade substantiva do fim-em-si da valorização do o valor, que por seu turno, transforma-se em cimento das ruínas não notadas, cuja liga, dada por essa cimentação, compõe-se, além dos corpos-escombros – serão estes a base material do espaço geográfico contemporâneo??? –, do fetichismo e do paralelo de uma natureza como modelo, que na linguagem das ciências modernas que compõem parte do amplo projeto societal burguês, fornecia a forma de funcionar harmônica, ininterrupta e constante para a sociedade.

Nas Teorias da Mais-Valia, Karl Marx (1987) demonstra como parte do que fora supramencionado, como essa “maioridade científico-institucional” da natureza a faz emergir domada pelo valor como o rastro do pensamento econômico clássico (ligado às classes dominantes na transição para o modo de produção capitalista) que agora amplia a maneira da natureza funcionar como paralelo do funcionamento social, e estendendo-o à toda História, acaba por varrê-la do embaraço de tomar o volante nas mãos, entregando-o a uma externalidade sempre impessoal, da mão invisível, passando pelo idealismo subjetivo do apriorismo kantiano ou mesmo pelo Espírito Absoluto.

 

Não se pode censurar os fisiocratas por terem, como todos os seus sucessores, considerado o capital estes modos materiais de existência, instrumentos, matérias primas etc., separados das condições sociais em que aparecem na produção capitalista, ou seja, na forma como genericamente são elementos do processo de trabalho, dissociado da forma social, erigindo assim o modo capitalista de produção, em modo eterno e NATURAL [grifo nosso] de produção. Para eles é imperativo que as formas burguesas de produção configurem formas naturais. Tiveram eles o grande mérito de considera-las formas fisiológicas da sociedade: formas oriundas da necessidade natural da própria produção, independentes da vontade, da política etc. (Marx, 1987, p. 19).

 

Marx (1987) completa dizendo que por detrás da natureza as leis são materiais, o erro consiste em ver na lei material determinado estágio social e histórico, a funcionar como uma lei abstrata que rege igualmente todas as formas sociais que emergiram na história. Materialmente a questão da propriedade da terra se resolveu nos cercamentos, inaugurando a efetivação da era do “trabalho livre” para se vender cada vez mais barato para o capital. Materialmente a terra cativa é a certidão de nascimento da privatização da natureza e da riqueza pública, para lembrar o paradoxo de Lauderdale (ver Foster, 2012).

Uma natureza-modelo perfeito para uma indústria maquinofatureira desejosa pela efetivação do suposto “poder ilimitado do homem sobre a natureza”, mas nesse sistema de mercado a emergir e amadurecer, tendo a tarefa de manter os pobres pobres (funcionalizar a pobreza), a liberdade para comprá-los dependia disso, de sua humanidade se fazendo ruína na transfusão do sangue do trabalho vivo ao mortificado que nos circunda. Por essa razão Walter Benjamin alerta-nos de que toda expressão da cultura é expressão da barbárie (todo documento de cultura é um documento de barbárie).

 

Considerações derradeiras e sempre iniciais sobre ruínas e escombros

 

 Eis o caminho que vem reduzindo a humanidade à carcaça do tempo da acumulação capitalista, e continuamos sem enxergar as ruínas. A velocidade supramencionada é materialmente a conquista – de caráter obviamente violento – do capitalista no processo de contração da fórmula do capital que leva de D – M – D’ à D – D’. Nas palavras de Dutra Jr.,

 

Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos, algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017 ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017, correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?

 

            As desventuras do trabalho e da natureza aprontam das suas. Andrea Wulf (2019) narrou em seu livro A invenção da natureza, parte da relação que existia entre os irmãos Humboldt  e Goethe. O poeta admirava o irmão mais novo Alexander, pela erudição do conhecimento e pela incursão nas ciências e na compreensão da natureza. Se encontravam, debatiam; o irmão caçula estimulava o já consagrado poeta a escrever e publicar suas ideias no campo das ciências naturais (que também eram objeto de fascínio por parte de Goethe). Dessa relação uma passagem traz algo curioso sobre um desses aspectos do pensamento de Goethe e outro de Humboldt.

            Para Goethe, ao contrário da teoria de Descartes de que os animais eram máquinas, sua convicção os entendia como um organismo vivo composto de partes num todo unificado. Porém unificar esse todo implicou demolir, destruir, varrer aquela casa habitada pelo casal, quando Fausto cai cego ante o desenvolvimento, uma cegueira quase que como um questionamento da natureza, que se pudesse ser consciente sem a parte que a faz História questionar-se-ia: o que eu fiz para mim mesma? A unidade da natureza sustentada por um fio, uma casinha a ser eliminada de forma terceirizada pelas mãos do diabo, as mãos terceirizadas implicam um caminho histórico já feito.

            Ao lado de Goethe seu amigo Alexander Von Humboldt imprimia uma forma de produzir conhecimento centrada na concepção de que a ideia de força aplicada a organismos por Blumenbach, por exemplo, poderia ser aplicada à natureza em um nível mais amplo – interpretando o mundo natural como um todo unificado animado por forças interativas.

Se tudo se conectava, para Humboldt era fundamental examinar diferenças e similaridades sem perder de vista o todo – a comparação se tornou o principal meio de compreender a natureza. Um todo que não despreza a particularidade, mas a subsume nesse mesmo todo, lembra bem duas coisas: o trabalho abstrato no sentido do trabalho concreto que perdeu sua particularidade nesse todo, apesar de considerar-se as partes; e a necessidade de unificação do sistema métrico (uma geografia que inventariava) associado ao “encurtamento das distâncias” no âmbito da circulação capitalista.

            A morte-vida representada pela ruína só se mantém invisível no êxtase, no tempo homogeneamente esvaziado da substância viva da sua própria produção social, do cálculo lucrativo sustentado na articulação sociometabólica Estado-Capital-Trabalho, articulado pela mercantilização fetichista. A ruína pode ampliar a capacidade de tangibilidade dessa velocidade nascida da expulsão do vínculo orgânico com a natureza, sendo o ser humano posto a vagar como um apêndice a quem te oferecer a chance do pão de cada dia, que a maioria esmagadora dos viventes come com o suor real de seus rostos.

Porém não cruzamos qualquer das esquinas sem passar por elas, é o espaço que se faz concretude como a equivalência geral que a tudo habita, pois é processo, como um trabalho aprisionado tal e qual a pedra que precisa ser rolada morro acima no dia seguinte; ruínas vivas pois não se iludem com a necessária, todavia relativa, fixidez requerida pelo trabalho morto – já devidamente alimentado pelo trabalho vivo –, pois todas as formas (e conteúdos) que nos circundam trazem no bojo de sua certidão de nascimento um ato de barbárie, como no alerta benjaminiano.

Como uma espécie de apelo do uso resgato, já concluindo, as palavras de Kundera:

 

Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente ele quer se lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo ainda está muito próximo de si [...] Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento (p. 30 – 31).

 

Suspeito que isso tenha algo a ver com o valor de uso (lentidão) e valor (velocidade), mas isso é assunto para outro momento.

O capital em crise é a fratura metabólica sempre ativa, constante, presente, é a impossibilidade do humano; mas para compreender isso eu também suspeito que seria preciso desacelerar, para ver as ruínas e nos ver como ruínas (da própria humanidade), e no espelho da desumanização reencontrar a natureza desencontrada do trabalho como fruição da riqueza concreta e como possibilidade de nos realizar omnilateralmente.

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 * O presente texto foi apresentado como participação na mesa redonda Territórios em crise: campo, cidade e natureza, por ocasião do II Seminário Nacional Geografia das Crises do Capital, promovido pelo GECA (grupo de estudos do Capital – FFLCH/USP). O grupo de pesquisa é coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto/USP. O evento aconteceu na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, entre os dias 13 a 17 de novembro de 2023, foi coordenado localmente pelo Prof. Dr. Sócrates Menezes/UESB.

 

Referências

 

BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história. In: BENJAMEN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura. 8º Ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas, v. 1) (p. 241 – 252).

CONCEIÇÃO, A. L. & DUTRA JR., W. Natureza e trabalho. Na tessitura das mediações do capital. In: CONCEIÇÃO, A. L. [et al] (org.). Marx, a geografia e a teoria crítica. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2023 (p. 259 – 276).

DAVIS, M. O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária. Rio de Janeiro: Record, 2006.

DUTRA, JR. W. Sobre pares dialéticos e ouro de tolo: ‘e se a pedra filosofal tivessem, ainda o filósofo faltava à pedra’. In: <http://capitaltrabalho.blogspot.com/2023/02/sobre-pares-dialeticos-e-ouro-de-tolo-e.html>. Acesso em 01.nov. 2023.

FOSTER, J. B. A economia da ecologia política marxista. Lutas Sociais, São Paulo, n.28, p.87-104, 1o sem. 2012.

KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MARX. K. Teorias da Mais-Valia: história crítica do pensamento econômico. 2º Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987 (volume I).

MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

WULF, A. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander Von Humboldt. 2º Ed. São Paulo, Planeta do Brasil, 2019.