Wagnervalter Dutra Júnior (UNEB/GPECT)
Projeto de extensão GeMarx - DCH VI
No Fausto, de Goethe, ao
entrar em contato com Mefistófeles, o próprio Fausto, curioso por saber quem
era aquela figura, assim expressou-se: “Com tal enigma, que se alega?”.
Mefistófeles devidamente se mostra, apresentando-se em suas próprias palavras
da seguinte forma: “O Gênio sou que sempre nega – eu sou o Espírito que tudo
nega, em algumas traduções – E com razão, tudo que vem a ser é digno só de perecer; Seria, pois,
melhor, nada vir a ser mais. Por isso, tudo a que chamais de destruição,
pecado, o mal; Meu elemento é integral”.
A realização objetivada
dessa parceria Fauto-Mefistófeles é a cegueira social-humana sobre tudo aquilo
que efetivamente importa, enquanto possibilidade de converter aquelas forças
produtivas em liberdade efetiva para o gênero humano, implicando na destruição
do último rincão de humanidade, que almejava apenas viver e com simplicidade;
pois, para a racionalidade do tempo humano submetido ao lucro enquanto
sociabilidade hegemônica, viver com simplicidade já era um atravancar demasiado
para que a realização dessas forças produtivas, cegas ao seu limite histórico,
pudesse suportar. Por essa razão, Fausto pede a Mefistófeles para se livrar do
“empecilho”, que era a habitação de um casal simples e idoso, Filemon e Baucis,
e, que, entretanto, estaria atrapalhando a marcha da nova terra-sociedade a se
realizar.
Eis um interessante
componente do modo de produção centrado no capital, e que o gênio literário de
Goethe consegue captar com imensa sagacidade em sua mensagem central: nada mais
resistirá à marcha do progresso, nem mesmo, dialeticamente, a vida que o
alimenta e é capaz de fazê-lo marchar; e aqui reside a tensão inaugurada: não
há limites para tornar as pessoas coisas, peças, supérfluos de uma engrenagem
que coletivamente é o único devir a se apresentar plausível no curso da
história; e isso, potencializado, graças às diversas filosofias da história que
celebram a apoteose de uma materialidade destrutiva pelo caminho da destruição
das pegadas e dos passos dessa mesma materialidade.
Assim Hegel foi a maior
expressão dessa circularidade ontológico-metafísica, na medida em que o
movimento do real aprisiona-se na construção especulativa, é o movimento autoconsciente do conceito que move o
mundo, logo é a ideia (retornarei a isso adiante). Esse deslocamento entre a
efetiva objetividade material do mundo e sua apresentação como ideia é que
permite frases do tipo: “E daí? Eu não sou coveiro”; pois o real é supostamente
forjado no discurso e no discurso pode ser destruído, a despeito das mais de
250.000 mortes concretas, efetivas, reais.
O que é capaz de nos
oferecer um mundo que nega a sua substância humana vital (o trabalho produtor
de valores de uso)? Relembremos o que disse o empresário Roberto Justus, cuja
fortuna alcança os 45 milhões de reais, no início da pandemia: há uma “‘histeria
desproporcional’ e que ‘apenas 10% a 15% dos velhinhos vão morrer’”, ou mesmo: “Você
vai ver a vida devastada da sociedade na hora do colapso econômico, dos pobres
não terem o que comer, das empresas fecharem, desemprego em massa, não dá para
comparar com um ‘virusinho’, que é uma ‘gripezinha’ para 90% das pessoas”. O
mesmo ethos desde o início, porém
cabe uma reflexão: o grande culpado pela tragédia econômica seria mesmo a
pandemia? O vírus? A doença?
Outro grande leitor da
modernidade, Walter Benjamin, escreve um texto refletindo a respeito do caráter
destrutivo, fundamento dessa encruzilhada da modernidade, herdeira de um
experiência espaço-temporal que guarda a imanência de uma frase clássica do
Manifesto Comunista: ‘tudo que é sólido, desmancha no ar’.
Nas palavras de Benjamin:
“O caráter destrutivo conhece apenas uma divisa:
criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho. Sua necessidade de
ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio (...) O caráter
destrutivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas
de nossa própria idade; reanima, pois toda eliminação significa, para o
destruidor, uma completa redução, a extração da raiz de sua própria condição. O
que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o
reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quando se testa o
quanto ele merece ser destruído. Este é o grande vínculo que envolve, na mesma
atmosfera, tudo o que existe. É uma visão que proporciona ao caráter destrutivo
um espetáculo da mais profunda harmonia (...) O caráter destrutivo está sempre
atuando bem disposto. A natureza lhe prescreve o ritmo, pelo menos
indiretamente: pois ele deve adiantar-se a ela, do contrário ela própria
assumirá a destruição (...) O caráter destrutivo não se fixa numa imagem ideal.
Tem poucas necessidades, e a menos importante delas seria: saber o que ocupará
o lugar da coisa destruída. Primeiramente, pelo menos por um instante, o espaço
vazio, o lugar onde se encontrava a coisa, onde vivia a vítima. Certamente vai
aparecer alguém que precise dele, sem ocupá-lo (...)” (1931).
Benjamin
percebia, em sua maneira sagaz de ler a realidade, com uma criatividade
dialética aguçada, que o caráter destrutivo representa a pulsão de morte do
capital, entretanto, pode ser bem capturado e reorientado para as pulsões da
vida, relativas às essências substanciais da potência humana desperta por
forças produtivas tão dinâmicas, porém completamente escravas de uma
irracionalidade substantiva e de um tempo carregado do mesmo vazio que nos
separa das nossas obras, não nos vemos naquilo que fazemos.
Hoje, mais do que nunca,
querem nos fazer crer que a potência liberta do trabalho expropriado nada tem a
ver com o que acontece diante de nós, atento ao comportamento ideo-cultural
moldado no âmbito da sociabilidade burguesa o próprio Benjamin faz um alerta
estarrecedor em suas teses sobre o conceito de história:
“Articular historicamente o passado não
significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma
recordação, como ela lampeja no momento de um perigo. O perigo ameaça tanto a
existência da tradição como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos:
entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é
preciso tentar arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.
Pois o Messias não vem apenas como redentor; ele vem também como o vencedor do
Anticristo. O dom de despertar no passado-presente as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do cientista social (historiador) convencido de que
tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não
tem cessado de vencer” (2012, p. 243 – 244).
Esse é o mesmo Messias que distorce o passado se
apresentando como novidade aqui e alhures, ou mesmo num passado remoto; esse
inimigo forja a novilíngua orwelliana, completamente dirigida para sua nova
forma em que as palavras, alçadas em sua materialidade, abrirão pouco espaço
aquém e além da fascista cultura do cancelamento, com todas as idiossincrasias
e clivagens que além das classes sociais perfazem gênero, ‘raça’ e patriarcado.
A voz é retirada, negada, violentada; e no contexto da pandemia a existência
também o é, presa na vitória da
economia sobre a vida.
O corpo é um sujeito sem
face, desprovido de história, e tais operações que pasteurizam – o sentido aqui
aludido é de eliminação das impurezas da nossa face humana em detrimento de uma
padronização de seres humanos dispostos não só a pensar igual, mas, inclusive,
a ter o mesmo rosto físico (fico pensando, por exemplo, nos processos de harmonização
facial, procedimento estético que explodiu recentemente) – a nossa existência
corpóreo-material só abrem espaço para eliminar tudo o que não for
capitalisticamente narcísico. Você consegue ver a dor do outro nesse espelho?
No
dia de hoje (03/03/2020), ao ler as notícias, me deparo com a fala do atual
chefe do executivo dizendo que não errou nada em suas previsões a respeito da
pandemia, concomitantemente ele veta aos governadores e prefeitos a
possibilidade de comprar vacina. Responde com palavras vazias de sentido, sustentadas
num processo de pulsões superficiais do caráter, conforme a bela análise de
Wilhelm Reich em seu livro Psicologia das Massas e o Fascismo, com a
sinalização de mais mortes concretas; em que medida palavras ou discursos
enraivecidos, característicos de um proto-fascista genocida no poder, são
suficientes diante da maior crise sanitária-social-econômica-política que
enfrentamos?
Tudo continua a ser um
problema discursivo? Ainda que, como nos lembra os autores da ideologia alemã,
o fazer da vida é um ato histórico, concreto (é preciso estar de pé para fazer
história, e não transformamos a natureza dormindo e sonhando com algum tipo de
mudança); jamais é um ato mental, dissociado da materialidade do ser social que
produz a consciência, e não da consciência que o produza (?). A crítica ao
programa de Gotha repõe essa frase com um grau de didatismo que ainda não foi
apreendido em profundidade pelas pessoas: “cada passo do movimento real é mais
importante do que uma dúzia de programas”.
Esse “caldo de cultura” forjado
a partir do rebaixamento do horizonte filosófico burguês – como se agora o
corpo ou o discurso fossem os reais produtores da concreticidade social – é
parte da ideologia que é capaz de tornar as pessoas cúmplices de sua própria, e
aparentemente, inexorável miséria... a servidão e a exploração acabam por
absorver essa fisionomia da nossa condenação, parece um privilégio ser
explorado, tamanha a vitória da ideologia dominante, e isso é em grande parte,
hoje, referendado pelo negacionismo (descompromisso sistemático com a verdade
dos fatos ou a distorção dos fatos históricos – as fake news que o digam).
O revisionismo no campo da
historiografia dá a medida dessa tragédia onde a materialidade dos fatos é
negada em nome dos “discursos”, e quando se fala em materialidade, estamos
falando em mais de 10 milhões de pessoas que foram contaminadas pelo coronavírus
no Brasil; no futuro os revisionistas confrimarão que foi uma gripezinha? Se enfrentarmos outras
pandemias piores que essa, o que é bem provável, dada a forma como se produz
alimento-mercadoria no capitalismo, certamente os revisionistas dirão que essa
pandemia foi, em grande parte, invenção da mídia. Referindo-se aos mesmos,
Pierre Vidal-Naquet (apud TRAVERSO,
2017, p. 27) os batizou de “assassinos da memória”, acertadamente.
O negacionismo é uma
estratégia ideológico-política e intelectual, amplamente utilizada por governos
de matriz autoritária e seus intelectuais orgânicos ao longo da história, e o “ápice”
da realização do negacionismo é a barbárie dos campos de concentração nazista,
inclusive negada pelos revisionistas. Processos dessa natureza só podem
oferecer requintes de crueldade, ao já amplo arsenal de desumanização que o
capital impõe aos seres humanos no âmbito de suas existências cotidianas.
“O trabalho liberta” (quem?),
essa era a inscrição nos portões do campo de concentração de Auschwitz;
estaríamos sendo enviados para novos campos de concentração, quando o governo
faz clara opção pela economia ao invés de optar pela vida? Diga-se de passagem,
não são excludentes, pelo contrário; o mote por trás dessa operação do discurso
ideológico dominante, visa nos tornar cúmplices da naturalização de todas as
mortes evitáveis, virando o jogo de uma forma estranha, ao retornar para o
indivíduo o peso da destruição da economia e manter ilesos qualquer
questionamento à ordem estabelecida, ao status
quo. Ou o leitor já chegou a ouvir, durante esse mais de um ano de
pandemia, que o problema era a forma de exploração do capital ante a natureza
(como forma de garantir a exploração da grande maioria dos seres humanos pela
minoria dos capitalistas)?
Não sem razão, no momento em
que atravessamos esse ‘caos’ fabricado, a lucratividade do capital financeiro
continua em cifras assustadoras, a exemplo do CEO da Amazon, Jeff Bezos, que
registrou durante a pandemia, seu maior ganho pessoal em um só dia, algo em
torno de mais de 13 bilhões de dólares (o que equivale a 74,1 bilhões de reais
ao dólar de hoje – esse montante contabiliza mais de 67 milhões de salários mínimos
no Brasil – para termos uma ideia: trabalhando 40 anos ininterruptos e ganhando
salário mínimo, o que perfaz 480 salários, o valor que você consegue juntar em
sua vida laboral é 528 mil reais – essa soma que Bezos ganha em um dia apenas,
daria para bancar o trabalho de mais de 140 mil pessoas por 40 anos a um
salário mínimo).
Por que o negacionismo faz-se necessário como
prática de governo nessa conjuntura? Vejamos a partir da arguta visão de
Marilena Chauí:
“Inimigo da tirania, o filósofo Montaigne
escreveu um ensaio intitulado ‘A covardia é a mãe da crueldade’. A covardia,
explica o filósofo, nasce do medo do outro que, por isso, deve ser eliminado de
maneira feroz. O covarde é impulsionado pelo temor de que o outro, sendo melhor
do que ele e corajoso, possa vencê-lo e por isso é preciso exterminá-lo, seja
fisicamente, seja moralmente, seja politicamente. O cruel, é um mentiroso
porque se apresenta com a máscara da coragem quando, na verdade, habitado pelo
medo, é movido pela cólera e não há nada pior para uma sociedade do que um
governante cruel e colérico, pois não julga segundo a lei e sim segundo seu
medo” (2020)
E o que eles tanto temem?
Vejamos.
Na Sagrada família, Marx e Engels nos falam dos mistérios da
construção especulativa com um exemplo bem interessante:
“Quando, partindo das maçãs, das pêras, dos
morangos, das amêndoas, (dos umbus) reais eu formo para mim mesmo a
representação geral ‘fruta’, quando,
seguindo adiante, imagino comigo mesmo que a minha representação abstrata a fruta, obtida das frutas reais, é algo
existente fora de mim e inclusive o verdadeiro
ser da pêra, da maçã, do umbu, etc. acabo esclarecendo, - em termos especulativos – a fruta
como a substância da pêra, da maçã,
do umbu, etc. Digo, portanto, que o essencial da pêra não é o ser da pêra, nem
o essencial do umbu o ser do umbu. Que o
essencial dessas coisas não é a sua existência real, passível de ser apreciada
através dos sentidos, mas sim o ser abstraído por mim delas e a elas atribuído,
o ser da minha representação, ou seja, a
fruta (...) As frutas reais e específicas passam a valer apenas como frutas
aparentes, cujo ser real é a substância, a fruta” (p. 72).
Essa
operação da construção especulativa, que Marx e Engels expressam, nos
ajuda/ensina a depurar o real e verdadeiro sentido da materialidade do mundo,
imanente à existência natural da fruta efetiva que mata a fome tirada do pé;
pois nenhum umbu especulativo, como fruta, é capaz de matar a nossa fome; ao
fim e ao cabo é isso que eles temem: que nós entendamos o sentido da
radicalidade, que é apenas possível de ser encontrada no marxismo (a raiz do
homem é próprio homem, a raiz do humano é o próprio humano e nada pode nos
fazer, do ponto de vista prático, escapar dessa realidade); e que essa
inemilinável condição da humanidade produtora de si seja descoberta como
aqueles que reclamam as frutas reais de quem as tira, verdadeiramente, do pé. E
não é nenhum Messias, tampouco Jeff Bezos.
Que as pedagógicas misérias
reais do trabalhador nos permitam o salto efetivo que vai da teoria convertida
em força material a um mundo que nunca mais venha a matar pessoas, clamadas à
sua própria morte, para salvar o Deus Mamon (dinheiro – é esse o real sentido da
frase ‘salvar a economia’), de fome, de pandemia, de carência material, ou
mesmo causar a morte de uma criança a cada 15 segundos no mundo, por falta de
condições de saneamento básico. Minhas palavras tortas só tem sentido porque
tomam parte.
Referências
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<https://medium.com/alayaspas/o-car%C3%A1ter-destrutivo-7f687b2ebff7>.
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