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Élysée Reclus

quinta-feira, 4 de março de 2021

Algumas palavras tortas sobre a (ir)racionalidade pandêmica: salvar a economia ou a vida?

 Wagnervalter Dutra Júnior (UNEB/GPECT)

                                                      Projeto de extensão GeMarx - DCH VI

  

No Fausto, de Goethe, ao entrar em contato com Mefistófeles, o próprio Fausto, curioso por saber quem era aquela figura, assim expressou-se: “Com tal enigma, que se alega?”. Mefistófeles devidamente se mostra, apresentando-se em suas próprias palavras da seguinte forma: “O Gênio sou que sempre nega – eu sou o Espírito que tudo nega, em algumas traduções – E com razão, tudo que vem a ser é digno só de perecer; Seria, pois, melhor, nada vir a ser mais. Por isso, tudo a que chamais de destruição, pecado, o mal; Meu elemento é integral”.

A realização objetivada dessa parceria Fauto-Mefistófeles é a cegueira social-humana sobre tudo aquilo que efetivamente importa, enquanto possibilidade de converter aquelas forças produtivas em liberdade efetiva para o gênero humano, implicando na destruição do último rincão de humanidade, que almejava apenas viver e com simplicidade; pois, para a racionalidade do tempo humano submetido ao lucro enquanto sociabilidade hegemônica, viver com simplicidade já era um atravancar demasiado para que a realização dessas forças produtivas, cegas ao seu limite histórico, pudesse suportar. Por essa razão, Fausto pede a Mefistófeles para se livrar do “empecilho”, que era a habitação de um casal simples e idoso, Filemon e Baucis, e, que, entretanto, estaria atrapalhando a marcha da nova terra-sociedade a se realizar.

Eis um interessante componente do modo de produção centrado no capital, e que o gênio literário de Goethe consegue captar com imensa sagacidade em sua mensagem central: nada mais resistirá à marcha do progresso, nem mesmo, dialeticamente, a vida que o alimenta e é capaz de fazê-lo marchar; e aqui reside a tensão inaugurada: não há limites para tornar as pessoas coisas, peças, supérfluos de uma engrenagem que coletivamente é o único devir a se apresentar plausível no curso da história; e isso, potencializado, graças às diversas filosofias da história que celebram a apoteose de uma materialidade destrutiva pelo caminho da destruição das pegadas e dos passos dessa mesma materialidade.

Assim Hegel foi a maior expressão dessa circularidade ontológico-metafísica, na medida em que o movimento do real aprisiona-se na construção especulativa, é o movimento autoconsciente do conceito que move o mundo, logo é a ideia (retornarei a isso adiante). Esse deslocamento entre a efetiva objetividade material do mundo e sua apresentação como ideia é que permite frases do tipo: “E daí? Eu não sou coveiro”; pois o real é supostamente forjado no discurso e no discurso pode ser destruído, a despeito das mais de 250.000 mortes concretas, efetivas, reais.

O que é capaz de nos oferecer um mundo que nega a sua substância humana vital (o trabalho produtor de valores de uso)? Relembremos o que disse o empresário Roberto Justus, cuja fortuna alcança os 45 milhões de reais, no início da pandemia: há uma “‘histeria desproporcional’ e que ‘apenas 10% a 15% dos velhinhos vão morrer’”, ou mesmo: “Você vai ver a vida devastada da sociedade na hora do colapso econômico, dos pobres não terem o que comer, das empresas fecharem, desemprego em massa, não dá para comparar com um ‘virusinho’, que é uma ‘gripezinha’ para 90% das pessoas”. O mesmo ethos desde o início, porém cabe uma reflexão: o grande culpado pela tragédia econômica seria mesmo a pandemia? O vírus? A doença?

Outro grande leitor da modernidade, Walter Benjamin, escreve um texto refletindo a respeito do caráter destrutivo, fundamento dessa encruzilhada da modernidade, herdeira de um experiência espaço-temporal que guarda a imanência de uma frase clássica do Manifesto Comunista: ‘tudo que é sólido, desmancha no ar’.

Nas palavras de Benjamin:

“O caráter destrutivo conhece apenas uma divisa: criar espaço; conhece apenas uma atividade: abrir caminho. Sua necessidade de ar puro e de espaço é mais forte do que qualquer ódio (...) O caráter destrutivo é jovem e sereno. Pois destruir rejuvenesce, porque afasta as marcas de nossa própria idade; reanima, pois toda eliminação significa, para o destruidor, uma completa redução, a extração da raiz de sua própria condição. O que leva a esta imagem apolínea do destruidor é, antes de mais nada, o reconhecimento de que o mundo se simplifica terrivelmente quando se testa o quanto ele merece ser destruído. Este é o grande vínculo que envolve, na mesma atmosfera, tudo o que existe. É uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia (...) O caráter destrutivo está sempre atuando bem disposto. A natureza lhe prescreve o ritmo, pelo menos indiretamente: pois ele deve adiantar-se a ela, do contrário ela própria assumirá a destruição (...) O caráter destrutivo não se fixa numa imagem ideal. Tem poucas necessidades, e a menos importante delas seria: saber o que ocupará o lugar da coisa destruída. Primeiramente, pelo menos por um instante, o espaço vazio, o lugar onde se encontrava a coisa, onde vivia a vítima. Certamente vai aparecer alguém que precise dele, sem ocupá-lo (...)” (1931).

 

            Benjamin percebia, em sua maneira sagaz de ler a realidade, com uma criatividade dialética aguçada, que o caráter destrutivo representa a pulsão de morte do capital, entretanto, pode ser bem capturado e reorientado para as pulsões da vida, relativas às essências substanciais da potência humana desperta por forças produtivas tão dinâmicas, porém completamente escravas de uma irracionalidade substantiva e de um tempo carregado do mesmo vazio que nos separa das nossas obras, não nos vemos naquilo que fazemos.

Hoje, mais do que nunca, querem nos fazer crer que a potência liberta do trabalho expropriado nada tem a ver com o que acontece diante de nós, atento ao comportamento ideo-cultural moldado no âmbito da sociabilidade burguesa o próprio Benjamin faz um alerta estarrecedor em suas teses sobre o conceito de história:

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela lampeja no momento de um perigo. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso tentar arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como redentor; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado-presente as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do cientista social (historiador) convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (2012, p. 243 – 244).

           

Esse é o mesmo Messias que distorce o passado se apresentando como novidade aqui e alhures, ou mesmo num passado remoto; esse inimigo forja a novilíngua orwelliana, completamente dirigida para sua nova forma em que as palavras, alçadas em sua materialidade, abrirão pouco espaço aquém e além da fascista cultura do cancelamento, com todas as idiossincrasias e clivagens que além das classes sociais perfazem gênero, ‘raça’ e patriarcado. A voz é retirada, negada, violentada; e no contexto da pandemia a existência também o é, presa na vitória da economia sobre a vida.

O corpo é um sujeito sem face, desprovido de história, e tais operações que pasteurizam – o sentido aqui aludido é de eliminação das impurezas da nossa face humana em detrimento de uma padronização de seres humanos dispostos não só a pensar igual, mas, inclusive, a ter o mesmo rosto físico (fico pensando, por exemplo, nos processos de harmonização facial, procedimento estético que explodiu recentemente) – a nossa existência corpóreo-material só abrem espaço para eliminar tudo o que não for capitalisticamente narcísico. Você consegue ver a dor do outro nesse espelho?

            No dia de hoje (03/03/2020), ao ler as notícias, me deparo com a fala do atual chefe do executivo dizendo que não errou nada em suas previsões a respeito da pandemia, concomitantemente ele veta aos governadores e prefeitos a possibilidade de comprar vacina. Responde com palavras vazias de sentido, sustentadas num processo de pulsões superficiais do caráter, conforme a bela análise de Wilhelm Reich em seu livro Psicologia das Massas e o Fascismo, com a sinalização de mais mortes concretas; em que medida palavras ou discursos enraivecidos, característicos de um proto-fascista genocida no poder, são suficientes diante da maior crise sanitária-social-econômica-política que enfrentamos?

Tudo continua a ser um problema discursivo? Ainda que, como nos lembra os autores da ideologia alemã, o fazer da vida é um ato histórico, concreto (é preciso estar de pé para fazer história, e não transformamos a natureza dormindo e sonhando com algum tipo de mudança); jamais é um ato mental, dissociado da materialidade do ser social que produz a consciência, e não da consciência que o produza (?). A crítica ao programa de Gotha repõe essa frase com um grau de didatismo que ainda não foi apreendido em profundidade pelas pessoas: “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas”.

Esse “caldo de cultura” forjado a partir do rebaixamento do horizonte filosófico burguês – como se agora o corpo ou o discurso fossem os reais produtores da concreticidade social – é parte da ideologia que é capaz de tornar as pessoas cúmplices de sua própria, e aparentemente, inexorável miséria... a servidão e a exploração acabam por absorver essa fisionomia da nossa condenação, parece um privilégio ser explorado, tamanha a vitória da ideologia dominante, e isso é em grande parte, hoje, referendado pelo negacionismo (descompromisso sistemático com a verdade dos fatos ou a distorção dos fatos históricos – as fake news que o digam).

O revisionismo no campo da historiografia dá a medida dessa tragédia onde a materialidade dos fatos é negada em nome dos “discursos”, e quando se fala em materialidade, estamos falando em mais de 10 milhões de pessoas que foram contaminadas pelo coronavírus no Brasil; no futuro os revisionistas confrimarão que foi uma gripezinha? Se enfrentarmos outras pandemias piores que essa, o que é bem provável, dada a forma como se produz alimento-mercadoria no capitalismo, certamente os revisionistas dirão que essa pandemia foi, em grande parte, invenção da mídia. Referindo-se aos mesmos, Pierre Vidal-Naquet (apud TRAVERSO, 2017, p. 27) os batizou de “assassinos da memória”, acertadamente.

O negacionismo é uma estratégia ideológico-política e intelectual, amplamente utilizada por governos de matriz autoritária e seus intelectuais orgânicos ao longo da história, e o “ápice” da realização do negacionismo é a barbárie dos campos de concentração nazista, inclusive negada pelos revisionistas. Processos dessa natureza só podem oferecer requintes de crueldade, ao já amplo arsenal de desumanização que o capital impõe aos seres humanos no âmbito de suas existências cotidianas.

“O trabalho liberta” (quem?), essa era a inscrição nos portões do campo de concentração de Auschwitz; estaríamos sendo enviados para novos campos de concentração, quando o governo faz clara opção pela economia ao invés de optar pela vida? Diga-se de passagem, não são excludentes, pelo contrário; o mote por trás dessa operação do discurso ideológico dominante, visa nos tornar cúmplices da naturalização de todas as mortes evitáveis, virando o jogo de uma forma estranha, ao retornar para o indivíduo o peso da destruição da economia e manter ilesos qualquer questionamento à ordem estabelecida, ao status quo. Ou o leitor já chegou a ouvir, durante esse mais de um ano de pandemia, que o problema era a forma de exploração do capital ante a natureza (como forma de garantir a exploração da grande maioria dos seres humanos pela minoria dos capitalistas)?

Não sem razão, no momento em que atravessamos esse ‘caos’ fabricado, a lucratividade do capital financeiro continua em cifras assustadoras, a exemplo do CEO da Amazon, Jeff Bezos, que registrou durante a pandemia, seu maior ganho pessoal em um só dia, algo em torno de mais de 13 bilhões de dólares (o que equivale a 74,1 bilhões de reais ao dólar de hoje – esse montante contabiliza mais de 67 milhões de salários mínimos no Brasil – para termos uma ideia: trabalhando 40 anos ininterruptos e ganhando salário mínimo, o que perfaz 480 salários, o valor que você consegue juntar em sua vida laboral é 528 mil reais – essa soma que Bezos ganha em um dia apenas, daria para bancar o trabalho de mais de 140 mil pessoas por 40 anos a um salário mínimo).

 Por que o negacionismo faz-se necessário como prática de governo nessa conjuntura? Vejamos a partir da arguta visão de Marilena Chauí:

“Inimigo da tirania, o filósofo Montaigne escreveu um ensaio intitulado ‘A covardia é a mãe da crueldade’. A covardia, explica o filósofo, nasce do medo do outro que, por isso, deve ser eliminado de maneira feroz. O covarde é impulsionado pelo temor de que o outro, sendo melhor do que ele e corajoso, possa vencê-lo e por isso é preciso exterminá-lo, seja fisicamente, seja moralmente, seja politicamente. O cruel, é um mentiroso porque se apresenta com a máscara da coragem quando, na verdade, habitado pelo medo, é movido pela cólera e não há nada pior para uma sociedade do que um governante cruel e colérico, pois não julga segundo a lei e sim segundo seu medo” (2020)

E o que eles tanto temem? Vejamos.

Na Sagrada família, Marx e Engels nos falam dos mistérios da construção especulativa com um exemplo bem interessante:

“Quando, partindo das maçãs, das pêras, dos morangos, das amêndoas, (dos umbus) reais eu formo para mim mesmo a representação geral ‘fruta’, quando, seguindo adiante, imagino comigo mesmo que a minha representação abstrata a fruta, obtida das frutas reais, é algo existente fora de mim e inclusive o verdadeiro ser da pêra, da maçã, do umbu, etc. acabo esclarecendo,  - em termos especulativosa fruta como a substância da pêra, da maçã, do umbu, etc. Digo, portanto, que o essencial da pêra não é o ser da pêra, nem o essencial do umbu o ser do umbu. Que o essencial dessas coisas não é a sua existência real, passível de ser apreciada através dos sentidos, mas sim o ser abstraído por mim delas e a elas atribuído, o ser da minha representação, ou seja, a fruta (...) As frutas reais e específicas passam a valer apenas como frutas aparentes, cujo ser real é a substância, a fruta” (p. 72).

            Essa operação da construção especulativa, que Marx e Engels expressam, nos ajuda/ensina a depurar o real e verdadeiro sentido da materialidade do mundo, imanente à existência natural da fruta efetiva que mata a fome tirada do pé; pois nenhum umbu especulativo, como fruta, é capaz de matar a nossa fome; ao fim e ao cabo é isso que eles temem: que nós entendamos o sentido da radicalidade, que é apenas possível de ser encontrada no marxismo (a raiz do homem é próprio homem, a raiz do humano é o próprio humano e nada pode nos fazer, do ponto de vista prático, escapar dessa realidade); e que essa inemilinável condição da humanidade produtora de si seja descoberta como aqueles que reclamam as frutas reais de quem as tira, verdadeiramente, do pé. E não é nenhum Messias, tampouco Jeff Bezos.

Que as pedagógicas misérias reais do trabalhador nos permitam o salto efetivo que vai da teoria convertida em força material a um mundo que nunca mais venha a matar pessoas, clamadas à sua própria morte, para salvar o Deus Mamon (dinheiro – é esse o real sentido da frase ‘salvar a economia’), de fome, de pandemia, de carência material, ou mesmo causar a morte de uma criança a cada 15 segundos no mundo, por falta de condições de saneamento básico. Minhas palavras tortas só tem sentido porque tomam parte.

  

Referências

BENJAMIN, W. (1931). O caráter destrutivo. In: <https://medium.com/alayaspas/o-car%C3%A1ter-destrutivo-7f687b2ebff7>. Acesso em 2. Mar. 2020.

BENJAMIN, W. Magia, técnica, arte e política. Obras escolhidas I. 8° Ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.

CATRACA LIVRE. Roberto Justus indigna web com discurso absurdo sobre coronavírus. Disponível em: < https://catracalivre.com.br/entretenimento/roberto-justus-indigna-web-com-discurso-absurdo-sobre-coronavirus/>. Acesso em 2. Mar. 2020.

CHAUÍ, M. "O exercício e a dignidade do pensamento: o lugar da universidade brasileira". Disponível em: < http://www.ufba.br/ufba_em_pauta/o-exercicio-e-dignidade-do-pensamento-o-lugar-da-universidade-brasileira-conferencia>. Acesso em 2. Mar. 2020.

GOETHE, J. W. Fausto: uma tragédia – segunda parte. São Paulo: Editora 34, 2011.

GONÇALVES, C. Falta de água potável mata uma criança a cada 15 segundos. Disponível em: <https://exame.com/mundo/falta-de-agua-potavel-mata-uma-crianca-a-cada-15-segundos-3/>. Acesso em 2. Mar. 2020.

HEGEL, G. W. F. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. 4° Ed. São Paulo: Centauro, 2012.

MARX, K & ENGELS, F. A sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003.

MARX, K & ENGELS, F. Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, K. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.


MCKAY, T. Jeff Bezos, CEO da Amazon, ganhou US$ 13 bilhões em um só dia. Disponível em: <https://gizmodo.uol.com.br/jeff-bezos-ceo-amazon-ganhou-13-bilhoes-dolares-em-um-unico-dia/>. Acesso em 2. Mar. 2020.

REICH, W. Psicologia das massas do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TRAVERSO, E. Revisão e revisionismo. In: SENA JÚNIOR, C. Z. de; MELO, D. B. de & CALIL, G. G. (org.). Contribuição à crítica da história revisionista. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017.

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