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Élysée Reclus

quinta-feira, 9 de maio de 2024

A natureza nas ruínas da (des)humanidade: reflexões sobre velocidade, lentidão e a morte-vida do corpo orgânico-inorgânico do ser humano*

                                                             Wagnervalter Dutra Junior
                                                                    UNEB/PPGELS - GPECT


“Quem anda a pé sente o peso do próprio corpo”

 

O capital é um reino em ruínas e de ruínas que chafurdam a olho nu, todavia são ruínas vivas, cuja pulsão, tal e qual estivesse a sociedade respirando por aparelhos – como está –, só poderia ser mantida viva caso o aparelho estivesse ininterruptamente preso à tomada, o anjo da história é sua testemunha. E o que essa visão angelical nos informa?

Com o semblante voltado ao passado, os olhos escancarados, queixo caído e asas abertas, o anjo vê, no lugar em que mortais enxergam uma cadeia de acontecimento, tão-somente uma catástrofe única – (onde está essa catástrofe única e qual a geografia dela?) Ou as catástrofes também são mera expressão da peste epistêmico-eurocêntrica, seja lá o que isso queira significar?) – a acumular incansavelmente sob seus pés um amontoado de ruína sob ruína (palco também é ruína, pois remete a maneira como a história – e o espaço – emergem no drama barroco alemão: o acontecer natural é salvação; e que curiosamente remete ao a priori de um espaço que em Kant nasce sem substância social).

Ruínas que por nós não são vistas, pois a estética é também ideologia. Pensemos por exemplo: ao experimentar um hotel 5 ou 6 estrelas em Dubai, em que momento você terá tempo de pensar em quantos trabalhadores morreram ao construir a mais espetacular e moderna das ruínas, como a megacidade que planejam construir no deserto? A ruína acumulada reflete proporcionalmente a aceleração do tempo de giro do capital, ruína é velocidade (o que acelera desloca)? E o que se desloca?

Nas páginas iniciais do livro A lentidão, o escritor tcheco Milan Kundera começa por uma reflexão sobre o que poderíamos chamar de uma espécie de produção deliberada do desuso/influxo da lentidão no cotidiano da vida moderna. Ao narrar uma viagem que faz de carro pelo interior da França, surgida da vontade dele e de sua companheira de passar a tarde e à noite num castelo. No interior do referido país, afirma, é comum encontrar castelos que se transformaram em hotéis.

Dirigindo-se a um desses castelos observou pelo retrovisor um carro vindo logo atrás: “a pequena luz à esquerda pisca e o carro todo emite ondas de impaciência” (p. 7) e o motorista espreita o momento da ultrapassagem como um abutre a espreitar sua carcaça (Kundera, 2011), ou aquele conhecido vampiro que suga o sangue vital da força viva do mundo (trabalho), cuspindo coisas e coisificações aqui e alhures.

Escuta com atenção a sua companheira citar as estatísticas de acidentes nas estradas da França, observando ainda as ações desses mesmos motoristas, ela prossegue: “reparem bem nesses loucos em volta de nós. São exatamente os mesmos que se comportam com uma prudência extraordinária quando uma senhora de idade é assaltada diante deles na rua. Como podem não ter medo quando estão dirigindo” (Kundera, 2011, p. 7). Ao pensar numa possível resposta ele elabora:

 

[...] o homem curvado em sua motocicleta só pode se concentrar naquele exato momento do seu voo, agarra-se a um fragmento retirado tanto do passado como do futuro; e arrancado da continuidade do tempo [que possua substância]; em outras palavras, está num estado de êxtase; em tal estado não sabe nada de sua idade, nada de sua mulher, nada de seus filhos, nada de suas preocupações e, portanto, não tem medo, pois a fonte do medo está no futuro e quem se liberta do futuro nada tem a temer (Kundera, 2011, p. 7).

 

            Compreendendo a partir da propriedade privada edificando-se pela centralidade social das mediações alienantes e estranhadas de segunda ordem do metabolismo social, cabe a questão: quem tem medo do futuro e quem pode tê-lo? Até o medo do futuro é mercantilizado como propriedade privada, pelo que o presente nega, pelo que rejeita. O medo se põe diante de todos, porém experimenta-se qualitativamente distinto no âmbito da sociabilidade burguesa.

Por um lado, o paralisante medo do futuro é o medo da realização/objetivação no próprio presente da vida que se esvai pela negação do trabalho vivo e das necessidades concretas, expressas pelo que venho chamando de implosão do valor de uso; apenas possível de se realizar como riqueza abstrata, como a destrutividade que se tornou a marca de toda mercadoria, estas, desde sempre inclusive, nascem de uma destrutividade que se amplia na esteira do desenvolvimento histórico da lei geral da acumulação. A mercadoria compõe-se mais de destruição, no seu atual processo produtivo geral, do que de criação, com a intensificação da contradição capital versus trabalho, nos termos da reestruturação produtiva, da indústria 4.0 ou das finanças mundializadas.

Basta refletir sobre o envenenamento da água, da comida, do ar; o peso que o marketing tem no custo da mercadoria, auxiliado obviamente pelo fetichismo mercantil, dentre outros. Convém referenciar dois autores que tocam, cada qual à sua maneira crítica, nessa face da destrutividade da produção capitalista e das mercadorias. O livro Para Além do Capital, de István Mészáros, explora amplamente os contornos dessa destrutividade passando pela obsolescência planejada ao complexo militar-industrial, dentre outras questões relativas ao sociometabolismo do capital; ao passo que em A ecologia da economia política marxista, John Bellamy Foster explora os custos cada vez mais amplos das embalagens ao passo que o trabalho vivo distancia-se do conteúdo que a mesma embalagem traz; ainda faz referência, por exemplo, ao custo em relação ao PIB norte americano de uma simples mudança de modelo de automóvel de um ano para o outro, nos seus termos: “Eles estimaram que as mudanças de modelos automobilísticos sozinhas custaram ao país 2,5% do PIB” (Foster, p. 96). Os esforços de venda e produção fundem-se a ponto de se tornarem indistinguíveis, ainda pondera Foster (2012).

Nos rastros da mercadoria se encontra a unidade contraditória da destruição da humanidade do humano e da natureza, ainda que a premissa marxiana de se estar de pé para fazer história siga inexorável como lei fundamental na compreensão histórica, pois daqui o metabolismo trabalho e natureza estruturam o ser social a partir de múltiplas determinações.

Sendo assim é o medo do futuro-presente para a classe trabalhadora – pois se vê ameaçada pelo assombro do futuro ser o seu exato presente – experimentado concretamente como miséria, descartabilidade, desemprego, precarização, fome, trabalho escravo, agronegócio, comodities, soja, insegurança alimentar, ou mesmo o aumento do número de câncer por conta da imposição da lógica privada dos grandes grupos corporativos que controlam e vendem a comida envenenada que comemos; imposições dos sistemas agroalimentares que rompem barreiras naturais e nos brinda com pandemias (ver livro Pandemia e agronegócio), nunca é demais lembrar uma informação que Mike Davis nos traz no livro O monstro bate à nossa porta: a de que uma mega fazenda de suínos em Milford V Valey  produzia mais esgoto que a cidade de Los Angeles, que conta contava em 2021 com 3 milhões e 800 mil habitantes.

Desconsiderando o absoluto dos números em si, parece que estamos produzindo menos dejetos do que nosso próprio alimento produz de dejetos, ao menos nesse exemplo, o que leva a outra questão: como não ser meramente destrutivo – até em sentido ontológico – se se produz o dejeto como mercadoria, afinal dois dejetos se encontram na fazenda e dão as mãos para depois de uma escala no frigorífico aportar em alguma prateleira de supermercado. A natureza vendida como carne de porco segura as mãos do trabalho explorado para produzi-lo, este último retorna à cidade como consumidor – que geneticamente é trabalho alienado e fetichizado nas duas pontas do metabolismo social –, o dejeto que não se reconhece enquanto tal.

Seria a esfinge da ruína moderna os dejetos que se encontram não se reconhecendo? E a ruína como o espaço moderno (e arcaico) a lhe abrigar, a lhe viabilizar o desenvolvimento desigual e combinado, que reequilibra a balança da exploração e expropriação do trabalho e da natureza em prol de quem também os detém como propriedade privada. Ontologicamente apenas o controle privado de ambas as pontas que realiza primariamente o valor de uso – trabalho e natureza – é capaz de efetivar a sociabilidade hegemônica da fratura metabólica que o capital opera quando converte em propriedade privada o que nos faz humanos (refiro-me novamente ao que, por falta de melhor expressão, chamo por hora de implosão do uso).

Por outro e mesmo lado, o medo do futuro-presente (ao revés do trabalhador) está na perda da condição de ser (da) classe dominante no presente, é o medo de que o futuro não repita o atual status quo operacionalizado como presente eternizando; sem o menor compromisso com o que esteja fora da órbita da valorização do valor.

Este lado do medo visa transformar a aventura do valor em algo que pode pretender deixar o chão real (Terra), para se lançar em aventuras espaciais e colonização de novos planetas. As pretensões da empresa SpaceX de Elon Musk dão a real dimensão do alcance da alienação por parte do capital, cuja autonomização aparente da esfera financeira faz com que toda a materialidade possível que, trabalhada pelas mãos humanas, vira mercadoria, não se faça mais necessária – a natureza recebe sua certidão de puro valor fetichizado –, a velocidade na lógica da acumulação do capital é do mesmo grau da violenta  ilusão quanto uma possível materialidade dispensável à valorização do valor – ou ao menos desobrigada da matéria no sonho metafísico perfeito.

Compreendendo a negação da lentidão, Milan Kundera (2011), tornando a refletir sobre a pressa que mesmo não sendo dele, acabou por lhe impor ao menos um incômodo com aquele veículo em seu retrovisor, entendeu tal velocidade como a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao ser humano,

 

Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre em suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora de jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase [...] Curiosa aliança: a fria impessoalidade da técnica e as chamas do êxtase (Kundera, 2011, p. 7 – 8).

 

            Na técnica a chama do êxtase é o trabalho estranhado como sua autorrealização, como algo entre um quase autômato que não se emancipa das mãos que liga a tomada, mas até lá suga mais energia do que é capaz de produzir. Sobre essa velocidade, também apontam Conceição e Dutra Jr. (2023),

 

[...] uma velocidade que organizou a potência do trabalho para fins determinados, todavia distantes das necessidades humanas imediatas (uma espécie de sequestro da centralidade do uso). A máxima velocidade possível de transformação da natureza/terra em objetos que podem ser vendidos no mercado, que se gesta da condição sine qua non de controle da terra por parte dos burgueses nascentes [...] (p. 259)

 

O que preocupa Kundera (2011) em sua crítica é o desaparecimento de uma sociabilidade onde caiba a lentidão e os riscos implícitos nesse caminho – pululam os riscos de que continue a reduzirem-se os possíveis melhores abrigos para o valor de uso nessa interdição da lentidão. Por tal razão pergunta:

 

Por que o prazer da lentidão desapareceu? Ah, para onde foram aqueles que antigamente gostavam de flanar? Onde estão eles, aqueles heróis preguiçosos das canções populares, aqueles vagabundos que vagavam de moinho em moinho e dormiam sob as estrelas? Será que desapareceram junto com as veredas campestres, os prados e as clareiras, com a natureza (2011, p. 8)

 

            A lentidão permite ao corpo sentir-se a si mesmo, a velocidade faz com que esse mesmo corpo volte a desprender-se de si. A velocidade que destrói objetiva e subjetivamente o trabalho (força vital e humanidade) e a natureza requeridas pela acumulação, prova-se insustentável ante o próprio tempo dos ciclos naturais em sua recuperação bio-físico-química; não há tempo para que o corpo inorgânico do ser humano se recupere, ao passo que seu corpo orgânico é cada vez mais pressionado a alargar-se aos limites da exaustão; não é à toa que pílulas mágicas da recuperação física e mental divide o lócus com os corpos-escombros destruídos pela irracionalidade substantiva do fim-em-si da valorização do o valor, que por seu turno, transforma-se em cimento das ruínas não notadas, cuja liga, dada por essa cimentação, compõe-se, além dos corpos-escombros – serão estes a base material do espaço geográfico contemporâneo??? –, do fetichismo e do paralelo de uma natureza como modelo, que na linguagem das ciências modernas que compõem parte do amplo projeto societal burguês, fornecia a forma de funcionar harmônica, ininterrupta e constante para a sociedade.

Nas Teorias da Mais-Valia, Karl Marx (1987) demonstra como parte do que fora supramencionado, como essa “maioridade científico-institucional” da natureza a faz emergir domada pelo valor como o rastro do pensamento econômico clássico (ligado às classes dominantes na transição para o modo de produção capitalista) que agora amplia a maneira da natureza funcionar como paralelo do funcionamento social, e estendendo-o à toda História, acaba por varrê-la do embaraço de tomar o volante nas mãos, entregando-o a uma externalidade sempre impessoal, da mão invisível, passando pelo idealismo subjetivo do apriorismo kantiano ou mesmo pelo Espírito Absoluto.

 

Não se pode censurar os fisiocratas por terem, como todos os seus sucessores, considerado o capital estes modos materiais de existência, instrumentos, matérias primas etc., separados das condições sociais em que aparecem na produção capitalista, ou seja, na forma como genericamente são elementos do processo de trabalho, dissociado da forma social, erigindo assim o modo capitalista de produção, em modo eterno e NATURAL [grifo nosso] de produção. Para eles é imperativo que as formas burguesas de produção configurem formas naturais. Tiveram eles o grande mérito de considera-las formas fisiológicas da sociedade: formas oriundas da necessidade natural da própria produção, independentes da vontade, da política etc. (Marx, 1987, p. 19).

 

Marx (1987) completa dizendo que por detrás da natureza as leis são materiais, o erro consiste em ver na lei material determinado estágio social e histórico, a funcionar como uma lei abstrata que rege igualmente todas as formas sociais que emergiram na história. Materialmente a questão da propriedade da terra se resolveu nos cercamentos, inaugurando a efetivação da era do “trabalho livre” para se vender cada vez mais barato para o capital. Materialmente a terra cativa é a certidão de nascimento da privatização da natureza e da riqueza pública, para lembrar o paradoxo de Lauderdale (ver Foster, 2012).

Uma natureza-modelo perfeito para uma indústria maquinofatureira desejosa pela efetivação do suposto “poder ilimitado do homem sobre a natureza”, mas nesse sistema de mercado a emergir e amadurecer, tendo a tarefa de manter os pobres pobres (funcionalizar a pobreza), a liberdade para comprá-los dependia disso, de sua humanidade se fazendo ruína na transfusão do sangue do trabalho vivo ao mortificado que nos circunda. Por essa razão Walter Benjamin alerta-nos de que toda expressão da cultura é expressão da barbárie (todo documento de cultura é um documento de barbárie).

 

Considerações derradeiras e sempre iniciais sobre ruínas e escombros

 

 Eis o caminho que vem reduzindo a humanidade à carcaça do tempo da acumulação capitalista, e continuamos sem enxergar as ruínas. A velocidade supramencionada é materialmente a conquista – de caráter obviamente violento – do capitalista no processo de contração da fórmula do capital que leva de D – M – D’ à D – D’. Nas palavras de Dutra Jr.,

 

Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos, algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017 ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017, correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?

 

            As desventuras do trabalho e da natureza aprontam das suas. Andrea Wulf (2019) narrou em seu livro A invenção da natureza, parte da relação que existia entre os irmãos Humboldt  e Goethe. O poeta admirava o irmão mais novo Alexander, pela erudição do conhecimento e pela incursão nas ciências e na compreensão da natureza. Se encontravam, debatiam; o irmão caçula estimulava o já consagrado poeta a escrever e publicar suas ideias no campo das ciências naturais (que também eram objeto de fascínio por parte de Goethe). Dessa relação uma passagem traz algo curioso sobre um desses aspectos do pensamento de Goethe e outro de Humboldt.

            Para Goethe, ao contrário da teoria de Descartes de que os animais eram máquinas, sua convicção os entendia como um organismo vivo composto de partes num todo unificado. Porém unificar esse todo implicou demolir, destruir, varrer aquela casa habitada pelo casal, quando Fausto cai cego ante o desenvolvimento, uma cegueira quase que como um questionamento da natureza, que se pudesse ser consciente sem a parte que a faz História questionar-se-ia: o que eu fiz para mim mesma? A unidade da natureza sustentada por um fio, uma casinha a ser eliminada de forma terceirizada pelas mãos do diabo, as mãos terceirizadas implicam um caminho histórico já feito.

            Ao lado de Goethe seu amigo Alexander Von Humboldt imprimia uma forma de produzir conhecimento centrada na concepção de que a ideia de força aplicada a organismos por Blumenbach, por exemplo, poderia ser aplicada à natureza em um nível mais amplo – interpretando o mundo natural como um todo unificado animado por forças interativas.

Se tudo se conectava, para Humboldt era fundamental examinar diferenças e similaridades sem perder de vista o todo – a comparação se tornou o principal meio de compreender a natureza. Um todo que não despreza a particularidade, mas a subsume nesse mesmo todo, lembra bem duas coisas: o trabalho abstrato no sentido do trabalho concreto que perdeu sua particularidade nesse todo, apesar de considerar-se as partes; e a necessidade de unificação do sistema métrico (uma geografia que inventariava) associado ao “encurtamento das distâncias” no âmbito da circulação capitalista.

            A morte-vida representada pela ruína só se mantém invisível no êxtase, no tempo homogeneamente esvaziado da substância viva da sua própria produção social, do cálculo lucrativo sustentado na articulação sociometabólica Estado-Capital-Trabalho, articulado pela mercantilização fetichista. A ruína pode ampliar a capacidade de tangibilidade dessa velocidade nascida da expulsão do vínculo orgânico com a natureza, sendo o ser humano posto a vagar como um apêndice a quem te oferecer a chance do pão de cada dia, que a maioria esmagadora dos viventes come com o suor real de seus rostos.

Porém não cruzamos qualquer das esquinas sem passar por elas, é o espaço que se faz concretude como a equivalência geral que a tudo habita, pois é processo, como um trabalho aprisionado tal e qual a pedra que precisa ser rolada morro acima no dia seguinte; ruínas vivas pois não se iludem com a necessária, todavia relativa, fixidez requerida pelo trabalho morto – já devidamente alimentado pelo trabalho vivo –, pois todas as formas (e conteúdos) que nos circundam trazem no bojo de sua certidão de nascimento um ato de barbárie, como no alerta benjaminiano.

Como uma espécie de apelo do uso resgato, já concluindo, as palavras de Kundera:

 

Há um vínculo secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento. Imaginemos uma situação das mais comuns: um homem andando na rua. De repente ele quer se lembrar de alguma coisa, mas a lembrança lhe escapa. Nesse momento, maquinalmente seus passos ficam mais lentos. Ao contrário, quem está tentando esquecer um incidente penoso que acabou de viver sem querer acelera o passo, como se quisesse rapidamente se afastar daquilo que, no tempo ainda está muito próximo de si [...] Na matemática existencial, essa experiência toma a forma de duas equações elementares: o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau de velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento (p. 30 – 31).

 

Suspeito que isso tenha algo a ver com o valor de uso (lentidão) e valor (velocidade), mas isso é assunto para outro momento.

O capital em crise é a fratura metabólica sempre ativa, constante, presente, é a impossibilidade do humano; mas para compreender isso eu também suspeito que seria preciso desacelerar, para ver as ruínas e nos ver como ruínas (da própria humanidade), e no espelho da desumanização reencontrar a natureza desencontrada do trabalho como fruição da riqueza concreta e como possibilidade de nos realizar omnilateralmente.

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 * O presente texto foi apresentado como participação na mesa redonda Territórios em crise: campo, cidade e natureza, por ocasião do II Seminário Nacional Geografia das Crises do Capital, promovido pelo GECA (grupo de estudos do Capital – FFLCH/USP). O grupo de pesquisa é coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Fernandes de Sousa Neto/USP. O evento aconteceu na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/UESB, entre os dias 13 a 17 de novembro de 2023, foi coordenado localmente pelo Prof. Dr. Sócrates Menezes/UESB.

 

Referências

 

BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história. In: BENJAMEN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e cultura. 8º Ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas, v. 1) (p. 241 – 252).

CONCEIÇÃO, A. L. & DUTRA JR., W. Natureza e trabalho. Na tessitura das mediações do capital. In: CONCEIÇÃO, A. L. [et al] (org.). Marx, a geografia e a teoria crítica. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2023 (p. 259 – 276).

DAVIS, M. O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária. Rio de Janeiro: Record, 2006.

DUTRA, JR. W. Sobre pares dialéticos e ouro de tolo: ‘e se a pedra filosofal tivessem, ainda o filósofo faltava à pedra’. In: <http://capitaltrabalho.blogspot.com/2023/02/sobre-pares-dialeticos-e-ouro-de-tolo-e.html>. Acesso em 01.nov. 2023.

FOSTER, J. B. A economia da ecologia política marxista. Lutas Sociais, São Paulo, n.28, p.87-104, 1o sem. 2012.

KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MARX. K. Teorias da Mais-Valia: história crítica do pensamento econômico. 2º Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987 (volume I).

MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.

WULF, A. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander Von Humboldt. 2º Ed. São Paulo, Planeta do Brasil, 2019.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sobre pares dialéticos e ouro de tolo: “e se a pedra filosofal tivessem, ainda o filósofo faltava à pedra”

Prof. Dr. Wagnervalter Dutra Júnior

UNEB/GPECT/PPGELS

 

O mito romano do deus Jano mostrava um deus com duas faces que olham em sentido oposto. As duas faces sinalizam equilíbrio, dualidade, oposição. Sol e Lua, feminino e masculino, juventude e velhice; e, contemporaneamente, poderíamos lembrar de um determinado par dialético, de um oposto em que a potência/força de um está no outro, e, também, a sua negação; são capital e trabalho.

O filósofo grego, Heráclito de Éfeso, entendia que a realidade estava em constante devir (transformação), e a sua dinâmica, como tudo mais que existe, não pode escapar a esse movimento, o que quer dizer que, desde o pré-socráticos (um determinado grupo de filósofos gregos que antecederam Sócrates, que por suas preocupações com o estabelecimento de uma cosmovisão mais ampla, ficaram conhecidos como pensadores originários), podemos inferir que as forças que estão por trás de tudo que observamos, que fazem mover o nosso cotidiano, nunca dormem; por essa razão Heráclito nos deixou a seguinte pergunta: “Como alguém escaparia, diante do que nunca se põe?”.

No mundo contemporâneo esse algo que nunca se põe, insidiosamente, parece que não está por aqui; temos a impressão de que nossas vidas se atrelam ora a forças estranhas que não controlamos, ora a uma força de vontade que pode chegar a ser capaz de moldar os nossos destinos. O tempo, sendo rei, é esse interregno entre o estranho que governa – um governo do estranho – e a força de vontade que molda o destino e, por vezes, recebe algumas doses de um estimulante denominado meritocracia, como uma pílula mágica para a dor – ou a individualização de todas as doses do que faz uma vida; essa foi a narrativa que implodiu os EUA numa crise de vício em oxicodona (vide série Dopesick, disponível no streaming Star + / Star Plus). Entre o interregno e o limbo, é possível parar o tempo e o que não se põe?

Nada pode parar o tempo, tampouco o que não descansa; todavia, a maneira como a sociedade canaliza a força criadora da humanidade é fundamental para sabermos efetivamente que tipo de sociedade queremos ser (?). Exemplifico: aproveitando-se das tragédias provocadas pelas recentes chuvas no período do carnaval na cidade de São Sebastião em São Paulo, comerciantes estavam vendendo fardos de 12 garrafas de água de 500 ml por R$ 93,00 (noventa e três reais) (https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/02/agua-por-r-93-procon-pede-que-moradores-denunciem-precos-abusivos-em-cidades-atingidas-pelas-chuvas-em-sp.ghtml). 

Que sociedade somos? Por que nos pregam essas ideias: das forças estranhas que nos controlam – quem são essas forças-pessoas? – ou da força de vontade individual como definidora do destino? –, e querem nos fazer acreditar nelas? Aos que produzem a nossa percepção de tempo – ou ao menos nossa relação cultural com ele – importa que estas ideias sejam apreendidas como algo tão banal quanto o ar que se respira, ou “tão natural quanto a luz do dia”. E para que? Para que não saibamos que as forças-pessoas ocultas, que, verdadeiramente não são tão ocultas assim, e que a força de vontade que  molda o destino – por vezes também camuflada de empreendedorismo – na verdade visa retirar da lógica econômica maior – dos grandes poderes econômicos dessa sociedade – a responsabilidade por qualquer tragédia humanitária, ou mesmo pela fome que em 2022 ainda assolou 33 milhões de brasileiros e brasileiras, somando ainda 125,2 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar, conforme relatório de Rede PENSSAM (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) publicado pela Oxfam.

A relação capital versus trabalho materializa-se nessas diferentes questões, formas e relações acima aludidas; e o fundamento central de sua lógica é dobrar todas as coisas, pessoas e relações à força do dinheiro (que abriga parte da condição e do caminho para que o lucro produzido pelo conjunto da sociedade – que fica em pouquíssimas mãos, a dos burgueses – possa ser realizado e garantido). Entretanto esse mesmo dinheiro que, sob a forma de lucro, juros ou renda; flui para as mesmas mãos, só existe na exploração diária do trabalhador e na revitalização da precariedade e flexibilização do trabalho ao ponto de sintonizá-lo, à lá uberização, à forma e lógica mais perversa de funcionar do capital no âmbito de sua crise estrutural e permanente, sua forma/fração financeira.

O capital financeiro, pela via do poder social representado no dinheiro, chantageia todo o globo para funcionar orquestrado às suas vontades, desejos, necessidades e imposições; e estando seus representantes nos governos e no comando do Estado, esses capitalistas financeiros (Paulo Guedes é banqueiro, assim como os dois últimos ministros da fazenda anteriores a ele representam os bancos e o mercado financeiro – a exceção é Fernando Haddad, atual ministro) – ao lado do capital produtivo que não mais pode se dissociar das finanças –, dominam ampla e perversamente o controle do trabalho e de sua reprodução, escravizando, terceirizando, quarterizando, impondo formas precárias de trabalho parcial (part-time), jornadas de trabalho vendidas parceladamente, conforme a necessidade imediata do patrão no chão da fábrica, da escola, do comércio, do banco, da seguradora, da indústria farmacêutica ou do complexo industrial-militar; tudo para que as bolsas de valores sigam com as ações remunerando os parasitas e os mercados futuros estejam garantidos na mais perversa das novas formas (re)inventadas de explorar trabalho.

Além das formas diretas da extração e exploração do trabalho, o capital financeiro nos explora fora da nossa jornada de trabalho. E de que maneira? Um exemplo disso é a tributação, a forma como os impostos são cobrados diferentemente dos super-ricos em relação aos pobres (aqui incluídos pequeno e médio empresários). No relatório A sobrevivência do mais rico: porque é preciso tributar os super-ricos agora para combater as desigualdades, publicado pela Oxfam, é possível constatar que Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo, tendo uma fortuna de mais de 200 bilhões de dólares, paga impostos de pouco mais de 3%; enquanto Aber Christine, uma comerciante de Kampala, que comercializa arroz, farinha e soja, lucra 80 dólares por mês e paga 40% em impostos. Outros dados, do mesmo relatório, corroboram ainda mais o nosso argumento:

 

“• Desde 2020, o 1% mais rico amealhou quase dois terços de toda a nova riqueza – seis vezes mais do que os 7 bilhões de pessoas que compõem os 90% mais pobres da humanidade.

• As fortunas bilionárias estão aumentando em 2,7 bilhões de dólares por dia, mesmo com a inflação superando os salários de, pelo menos, 1,7 bilhão de trabalhadores – mais do que a população da Índia.

• As empresas de alimentos e energia mais do que dobraram seus lucros em 2022, pagando 257 bilhões de dólares a acionistas ricos, enquanto mais de 800 milhões de pessoas foram dormir com fome.

• Apenas 4 centavos de cada dólar de receita tributária vêm de impostos sobre o patrimônio, e metade dos bilionários do mundo vive em países sem imposto sobre herança, aplicado ao dinheiro que dão aos filhos.

• Um imposto de até 5% sobre os super-ricos do mundo poderia arrecadar 1,7 trilhão de dólares por ano, o suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar um plano global para acabar com a fome” (OXFAM, 2023).

Precisamos acreditar no que acreditamos para nos convencermos de que esta forma de arranjar o mundo é a única forma possível, surgida seja da vontade de Deus ou dos caminhos do destino. Todavia o mundo é o mundo dos seres humanos, construídos pelas suas próprias mãos. E não há justiça na forma como as coisas estão arranjadas nessa sociedade. A fome não poderia sequer existir nesse século XXI, é por si só um escândalo humanitário.

O capital financeiro é uma espécie de alquimia moderna, produzindo ouro artificial com a sua pedra filosofal. A pedra filosofal, como afirma Binswanger em seu livro Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe, não é,

 

“portanto, a substância da qual o ouro é feito, mas o aditivo essencial, o fermento ou catalisador que efetua a transmutação (ou transformação) do metal comum em precioso. O metal comum preferido para isso era o chumbo, associado ao planeta (e portanto ao deus) Saturno. O nome grego para Saturno é Cronos, que, por associação com a palavra Chronos (‘tempo’), sugere transitoriedade. Assim, Saturno é representado em ilustrações alquímicas por um velho com uma ampulheta  e uma foice. Relacionado a essa alquimia, o processo envolve a conversão de chumbo, metal inferior e símbolo do transitório, em ouro, metal precioso e símbolo do eterno [...] A alquimia é, portanto, uma tentativa do homem para escapar do tempo enquanto ainda está nele – seu esforço para se libertar da transitoriedade enquanto está nesta vida” (2011, p. 55).

 

Transmutação do tempo em um tempo onde o eterno e o transitório estão, aparentemente, separados. Assim o capital financeiro quer nos fazer crer, que um tempo, materializado em dinheiro, não precisa prestar contas a nenhum tipo de existência. Volto a exemplificar: o pesquisador Marc Chesney em seu livro A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia, expõe o poder dos grandes bancos, algo completamente assustador. Numa série de dados referentes ao ano de 2017 ele esclarece que o banco HSBC teve resultados comparados ao PIB inglês. Os quatro maiores bancos da França (BNP Paribas, Société Générale, o grupo BPCE e o Crédit Agrícole) representavam 281% do PIB nacional. Nesse mesmo ano o banco Credit Suisse, movimentou em produtos financeiros 28,8 trilhões de francos, e correspondiam assim a 36 vezes o total do seu balanço e a 687 vezes o total dos capitais próprios do banco de 41,9 bilhões de francos [...] A quantia era 43 vezes maior que o PIB suíço, ou seja, 668,2 bilhões de francos em 2017, correspondendo a 37,3% do PIB mundial (2020, p. 85). O que acontecerá quando todo esse dinheiro “inexistente” em sua grande parte for cobrado? Quem usufrui desse dinheiro “irreal-real”? Quais mãos são os verdadeiros ou verdadeiras donos e donas do dinheiro no sentido de quem realmente o produz? Quantas mãos fazem-se seus verdadeiros donos ou podem reclamá-lo?

A pedra filosofal é a mágica, o disfarce, o convencimento. A pedra filosofal precisava, para ser “mágica”, fazer esquecer ou obnubilar o seguinte ponto: o trabalho que tira o chumbo da terra, é o mesmo trabalho que acha o ouro real. O que sobe à superfície? O detalhe, o parcial, o brilho do chumbo transmutado, ou o ouro e tudo mais que parece também aportar fantasmagoricamente à terra, por que a aparência – ideologicamente – é mais importante do que a mão, e é justamente a mão que não é invisível que insiste em ser completamente escondida, ignorada e negada em sua existência, que perfaz esse par dialético que cria um mundo para o mal; todavia poderia fazê-lo pelo exato oposto. A verdadeira pedra filosofal de tudo é a nossa mão.

 

Referências

 

BINSWANGER, H. C. Dinheiro e magia: uma crítica da economia moderna à luz do Fausto de Goethe. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

 

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2020.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O espetaculoso-dinheiro metafísico: notas sobre “o” mendigo e a escravização ao fim em-si regadas a Elon Musk como acionista do Twitter

                                                              Wagnervalter Dutra

                                          UNEB DCH VI/PPGELS/GPECT

 

A cada dia que passa tem-se a impressão que ficamos cada vez mais distantes de duas coisas essenciais a nós: humanidade e materialidade enquanto processo. Acredito que ambas sejam imanentes à constituição do ser social, logo um par dialético, a materialidade que nasce do metabolismo com a natureza abraça, a princípio, um trabalho produtor de sentidos e materialidades além de si – sem o qual não se habilita o para si –, passo fundante para a sociabilidade e humanização (também da natureza, como da nossa naturalização).

Olhamos ao redor e parece que estranhezas e estranhamentos são os dois ingredientes de um mal estar assustador a reger a aparente normalidade cotidiana da vida, que vai dos regados à mais aberta exploração de imagens mercantilizadas, cujos portadores da promoção desse tosco espetáculo somos nós; à impulsão de efemeridades que turvam os ares dessa “atmosfera” do “estar de pé para fazer a história”, em ambos os contextos já sabemos quem são as maiores vítimas desse moinho satânico.

O alerta de Polanyi a respeito do moinho satânico guarda, sobremodo, sua atualidade, na medida em que as relações mercantis que se fazem concretas, são portadoras de um lado, da produção dos “átomos dispensáveis” e da destruição do componente de socialidade das relações sociais; e, do outro, vê-se dispensada de prestar contas com o peso da materialidade inerente às formas de metabolismo social, pois o trabalho, componente fundante dessa interação, capaz de produzir novas materialidades e ressignificar as existentes, é, a cada passo, uma persona-coisa non grata na composição da medida do valor como tempo de trabalho socialmente necessário.

O valor é hoje um tempo destituído da substância do trabalho, um tempo sem trabalho ou a pura oferta da carcaça do tempo? (já que o trabalho representado no emprego/ocupação se esvai quase na mesma velocidade da proporção em que a cada dia, ainda que numa pandemia, cuja argumentação foi de uma economia destruída – mas para quem, Elon Musk, Jeff Bezos ou os irmãos Leman? –, mais e mais bilionários são gestados em meio ao avassalador rolo compressor da taxa decrescente do valor de uso, muito bem representado pelo aumento da velocidade cíclica requerida pelo capital financeiro).

Em que medida que esse intangível capital financeiro é capaz de nos desumanizar concretamente? Qual o tipo e a extensão do poder que o capital financeiro tem? É possível mensurá-lo? Antes de retornar às questões aludidas cabe entender que as contradições da própria acumulação capitalista, conforme apontadas por Marx (2013), impelem os capitalistas a busca por contornar os entraves no tempo de giro do capital, na ampliação do seu ciclo e nas flutuações que o capital variável poderia oferecer, atravancando assim a produção segundo a medida ancorada no ethos da lucratividade do capital.

Tocando em miúdos, a dimensão do espaço-tempo e a força de trabalho precisam se ajustar constantemente às pressões históricas intrínsecas à  da reprodução capitalista, porém, cabe lembrar, que, ao expulsar (equivalendo até mesmo precarização e desvalorização da força de trabalho) o trabalhador do processo produtivo, como o entrave ao caminho que leva do dinheiro ao consumo – e aqui notamos que o dinheiro representa o cruzamento de equivalências vazias que dispensa a face, o olho e a mão, talvez para resgatar aquela invisibilidade que certa leitura da economia encontrou na mão do mercado – irá se apresentar? O dinheiro faz, na prática, a equivalência dos valores de troca que, almejando dispensar da composição do mercado os valores de uso, acaba por significar equivaler trabalhos concretos e distintos com os frutos de um trabalho sem distinção, abstrato.

O poder social do dinheiro é, nessa proporção, o poder social que abdicou da sua própria materialidade, não podendo ser mais do que o puro vazio em si, pois ideologicamente arquitetado como a máxima representação das coisas humanizadas, entretanto só é capaz de fazê-lo a partir daquela mesma proporção da crescente desvalorização do mundo humano ante a valorização do mundo das coisas, que um certo nativo de Trier já anteviu em 1844.

Num tópico intitulado O dinheiro e Cristo, dos Cadernos de Paris, também de 1844, Marx capturava o sentido que o dinheiro já guardava antes da metade do século XIX: 

 

“O que antes de tudo caracteriza o dinheiro não é o fato de a propriedade alienar-se nele: a atividade mediadora é que se aliena nele, é o movimento mediador, o ato humano, social, através do qual os produtos do homem se complementam uns aos outros, esse ato mediador torna-se função de uma coisa material, externa ao homem – uma função do dinheiro [...] Através deste mediador externo, o homem, em lugar de ser ele mesmo mediador para o homem, experimenta a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com os outros como uma potência independente de si mesmo e dos outros. Chega aqui ao cúmulo da servidão. Não é surpreendente que esse mediador se converta em um verdadeiro deus, porque reina onipotentemente sobre as coisas para os quais ele me serve como intermediário. Seu culto torna-se um fim em-si. Separados deste mediador os objetos perdem o seu valor. Se, primitivamente, o dinheiro só tinha valor na medida em que representava os objetos, estes, agora, só possuem valor na medida em que o representam” (2015, p. 200 – 201).

 

O que Marx (2015) descreve, retrata o papel central que a representação equivalente do valor (dinheiro), no lugar do próprio valor em-si, passa a jogar no âmbito do sociometabolismo capitalista e das suas relações cotidianamente mercantilizadas. Nos manuscritos econômico-filosóficos aparecia de maneira central o problema da alienação e da desumanização abrigada no processo, suas conexões se davam pela desvalorização desse ser-humano mercadoria proporcionalmente ao seu poder de criar mais mercadorias (coisas), seu poder criador era contraditoriamente destruidor também de si, potência autodestrutiva, como a alienação pode agora ser pensada, já que esse poder de criar mercadorias esvai-se cada vez mais de nossas mãos? A nossa destruição pode ser um prelúdio da nossa salvação ou estamos condenados infinitamente à partilhar vidas culpadas nesse “culto não expiatório” (Walter Benjamin) chamado capitalismo?

O caminho que nos leva de Marx a Debord pode ser instrutivo para entender a contemporaneidade desses deslocamentos e, em que medida, são capazes de gerar/controlar relações e objetivações sociais. Em Marx (2013) a riqueza apareceu, no século XIX, como um imenso acúmulo de mercadorias; em Debord, toda a vida se apresenta como um imenso acúmulo de espetáculos, onde quer que possa reinar as modernas condições de produção. O que a imagem representa na formulação de Debord?


As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente, apresenta a sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como invenção concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 1997, p. 13).

 

            Já dizia o ditado que o diabo vence quando convence que não existe, e o que é mais sintomático da expressão do não vivo, senão aquilo que nega justamente a vida e bloqueia nossa ominilateralidade? O que é capaz de representar esse poder desagregador? A potência do espetáculo consiste em fazer com que o mentiroso minta para si mesmo e para os demais com a convicção da verdade, não mais importando a aproximação entre a processualidade do fato e sua materialidade.

Num mundo carregado dessas “virtualidades” materiais negadas como explicar que em um só banco, o Crédit Suisse, circulou no ano de 2017, como volume de atividades em serviços financeiros, um valor 43 vezes maior que o PIB suíço (668,2 bilhões de francos), valor que perfaz 37,3% do PIB mundial (CHESNEY, 2021). Como pensar no supramencionado poder das finanças que faz circular em um só banco um valor em finanças que representa mais de um terço de tudo que mundo produziu; todavia, essa massa de dinheiro circulando, não poderá jamais realizar-se material ou produtivamente como algo útil-concreto, necessário, um valor de uso; justamente pelo fato de que seu poder consiste em não existir concretamente, mas controlando tudo que existe concretamente, seja pela política, pela abstração do Estado, pela corrupção, lavagem de dinheiro, espetacularização a vida, racismo, machismo, cultura do estupro, fake news, sexismo, misoginia, assalto ao fundo/riqueza pública, precarização do trabalho ou pela desmaterialização da realidade que leva ao grau máximo da alienação: uma objetivação aparentemente desobjetivada de toda a vida.

Puro espetáculo é a desfaçatez desse vazio do fim em-si, é sua caricatura, que agora é apresentada como algo palatável, como aquilo que é; como o beijo forçado do mendigo em paralelo às ações que, vendida na bolsa de valores, continua convertendo o corpo no templo da propriedade privada, logo todo comércio do corpo é tão válido quanto a diferença entre o trabalho do mestre-escola, que, ao trabalhar a cabeça das crianças, apenas extenua a si mesmo para enriquecer o empresário, e do operário da fábrica de salsichas, cujo sentido do seu fazer é o mesmo.

     E o que faz a união do Elon Musk como “estrela” do espetaculoso-metafísico mercado financeiro, recordista de ganho diário nesse mesmo mercado, que conforme índice bloomberg billionaires chegou a somar mais 25 bilhões de dólares à sua fortuna em apenas um dia no ano de 2021, e o seu interesse em uma das redes sociais de Zuckerberg, o Twitter (onde recentemente se tornou o maior acionista individual). A fantasia de um mundo administrado pela fantasia e pelo espetáculo já não é mais uma novidade, até pelo fato do coração desse mundo de hoje ser regido pela especulação. O que conecta essa soma e esse resto?

        Testam seus algoritmos nesse imenso banquete de barbárie e vazios fiduciários que, no buraco de minhoca da nossa podridão que chafurda na lama dos corpos fáceis-descartáveis das refugiadas ucranianas, ou da mulher em surto psicótico, cujos desdobramentos desse dantesco geraram o efeito colateral da subcelebridade efêmera do momento – regada a músicas de gosto duvidoso, imagens e mensagens que o próprio algoritmo se encarrega de dar uma roupagem vendável. Aceitamos de bom grado nos colocar também à venda no momento em que compartilhamos “uma mão no volante” e outra, nem um pouco (in)visível, em tudo, menos no carinho, pois a mão é de ferro, e que representa o que liga as extremidades pela garganta do buraco de minhoca: a propriedade privada da nossa humanidade nas mãos da destrutividade do processo produtivo que continua a nos esmagar. Não pode haver graça no que celebra nossa derrota enquanto sociedade escravizada pelo fim em-si do vil metal, medido e mediado no vazio daquele espelho de sempre que nunca pode representar o que de fato eu sou, porque somos!

Referências

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

CHESNEY, M. A crise permanente: o poder crescente da oligarquia financeira e o fracasso da democracia. São Paulo: Editora Unesp, 2021.

DEBORD, G. Sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I e III. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, K. Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

POLANYI, K. A grande transformação: as origens políticas e econômicas da nossa época. São Paulo: Contraponto, 2021.

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Das armas da crítica a crítica das armas: a barbárie bate à nossa porta como o abismo que te decifra e te devora1.

Wagnervalter Dutra Júnior

UNEB/PPGELS/GPECT

 

Introdução: apontamentos iniciais

 

Na Introdução da Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, Marx estrutura um conjunto de reflexões que objetivava combater as vertentes idealistas e metafísicas de matriz hegeliana, que compunham expressiva parte do sentido filosófico de naturalização da ordem do capital, ou a sua mais completa fetichização expressa na inexorabilidade da marcha do oriente ao ocidente, construída pela leitura da filosofia da história de Hegel; não à toa inicia com o seguinte argumento: “a crítica da religião é o pressuposto de toda crítica”. O que estaria por trás de uma afirmação dessa envergadura?

Quando observamos o mundo de hoje, o mundo da dessubstancialização do humano, dos seres humanos não rentáveis – como alerta Robert Kurz –; percebemos uma profusão de concepções irracionalistas e atitudes que convertem os problemas estruturais da lógica acumulativa, em problemas passíveis de resolução apenas na esfera do indivíduo, invertem o pólo de onde a realidade emerge concretamente, e, assim, a compreensão da gênese e condição histórica da humanidade lhe é roubada, a realidade passa a ser algo sempre apriorístico, sempre dado, nesse jogo de cartas marcadas o palco do acontecer salvífico (BENJAMIN, 2013) é o máximo que podemos atingir; os joelhos dobram ante a ilusão de um mundo sempre adiado e ante o bezerro de ouro (o Deus Mamon). Tais concepções não passam a limpo, não refletem sobre o crivo do que nos produz enquanto humanos, enquanto famintos, pobres, miseráveis, descartáveis e supérfluos ao funcionamento de uma sociedade. Também não esclarece como se produz os ricos (burgueses). Quais as implicações dessa forma de produzir uma determinada concepção de mundo invertida (às avessas)?

Um mundo que perde a sua própria essência (sua humanidade) e onde se assiste a tudo isso impassível, quase que num estágio de coma semi-profundo? Um outro sono dogmático? Outra revolução copernicana nos rumos da filosofia? Que misérias enfrentamos, ou nunca enfrentamos, ou temos medo de enfrentar? Por quê o medo de se olhar no espelho e conseguir um lapso reflexo de humanidade, se assustar com isso, aumentar o medo; por nunca experimentar a efetividade da partilha de um mundo que se olha e se vê, completo, por inteiro, demasiado e emancipadamente humano?

Após 500 anos de exploração (neo)colonial/imperialista, um grupo de indígenas do alto da Sierra Maestra se insurgiu, e perguntou ao mundo quem deveria pedir perdão após cinco séculos em que os indígenas foram expropriados de tudo. “De que temos que pedir perdão? Quem vai nos perdoar? De não morrermos de fome? De não nos calar em nossa miséria? De ter nos levantado em arma, quando encontramos todos os outros caminhos fechados? De que temos que pedir perdão? De não nos render? De não nos vender? De não nos trair? Quem tem de pedir perdão? E quem pode outorga-lo?”

O que mais esse mundo nos tira, além da substância viva (nossa vitalidade) na gangorra vampiresca que suga trabalho vivo, completamente escravizada por um mundo em que poucos, muito poucos, desfrutam da riqueza socialmente produzida e goza desse mundo, ao passo que os demais vivem uma imensa correria tentando alcançar o dia seguinte, e ter pelo menos uma casa antes de morrer.

Acrescente à conta do ultraliberal – old chicago boy – Paulo Guedes a fome que retorna, a pobreza que aumenta, a miséria, o desemprego e a nossa insistência em viver demais e atrapalhar o assalto ao fundo público via previdência social (“deficitária”). Qual a razão de nos deixar levar por palavras aparentemente bonitas (como reforma, austeridade, Estado mínimo, sanear contas públicas, enxugar a máquina – e por que metáforas tão “de casa”?), expressas no som da grave voz de William Bonner no jornal das oito?

O que nos tornou/a escravos (a propriedade privada dos meios de produção e o subsequente óbvio controle do trabalho/terra – do metabolismo societal), foi o que nos afastou historicamente de qualquer possibilidade de existir fora das mãos dos mercadores da ganância, do dinheiro, do intercâmbio do trabalho alheio que saltou da esfera do controle imediato e viu seu patrão pulverizado em holdings, spreads bancários e a mais pura especulação na Bolsa de Valores (seja de Tokyo ou Nova York – ao capital muito pouco importa); todavia, sem o trabalho e o trabalhador tudo se transforma num grande 1929 a lá Caverna do Dragão: sem saída.

 

Armas da crítica e crítica das armas: considerações sobre o humano às avessas

 

Refletindo sobre essa dimensão da materialidade das armas e da crítica, das armas da crítica e da crítica das armas (não é, jamais, uma questão do puro pensar, da crítica especulativa, do criticismo kantiano – o problema da razão ou da cognoscibilidade do conhecimento –, da crítica apenas como denúncia); a crítica2 é a suprassunção do mundo (da realidade concreta) que se enfrenta, que é o seu objeto; suprassumir a sua materialidade e as decorrentes relações institucionais e imateriais (autonomizadas em aparência, como o treino de um coletivo que não percebeu que “a religião é um suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma” MARX, 2005), não só a revolução é um ato histórico, o pensar também é um ato histórico antes de ser um ato mental.

A nossa imaginação é material, e a matéria é nossa imaginação, há um tecido/tessitura do mundo ancorada no que decorre dos nossos pôres teleológicos primários – necessidade de viver até o outro dia –, para isso comemos, construímos casas, bebemos, nos educamos, aprendemos, tudo isso quando ao interagir com a natureza através do trabalho produzimos comida real que enche nossa barriga de matéria que alimenta, para que depois caiba um pouco de fantasia, mas para continua sendo preciso o dia seguinte. Tudo que nos “educa” – no sentido de treinar e adestrar – para não percebemos que o ser humano não “é um ser abstrato, acocorado fora do mundo” (MARX, 2005), depõe contra a compreensão do profundo caráter histórico de tudo que existe, inclusive da natureza que se historiciza no processo de nossa constituição sociometabólica.

O fetichismo da mercadoria, a alienação, a ideologia cimentam-se num profundo escamoteamento das nossas misérias reais – um mundo refém do movimento autovalorativo do valor, do lucro –, nos tornando cúmplices, e até talvez parceiros, da própria barbárie que nos assola. Barbárie se tivermos sorte? Nem sei se cabe mais a palavra sorte em algum lugar desse mundo, que virou um grande campo de concentração, como um zoológico humano, à vista de um grande cassino (como parte do pacote turístico inclui assistir de camarote-cassino esse espetáculo chamado trabalhador-pobre-miserável-lumpesinato) de onde os burgueses reais – aqueles que podem bancar uma volta de foguete na atmosfera terrestre no mesmo momento em que mais de 60% dos lares brasileiros são atingidos por algum tipo de insegurança alimentar – apreciam a bela vista, garantia de que seus lucros continuem destruindo o mesmo metabolismo que possibilita nossa autocriação, em sentido ontologicamente amplo; contudo faz-se, pelas mãos da ideologia, algo distante, ilusório, mágico; uma força estranha que a tudo governa.

Essa força estranha, fonte “mágica” da riqueza, que, por exemplo, o papel-moeda representa e procura esconder no seu desvelamento transcendental é a perversa inversão que no plano aparente nos faz crer que é a Moeda que faz o ser humano (riqueza), e não o ser humano (riqueza) que faz a Moeda.

A naturalização poderia encontrar somente esse caminho suposto mediante o "natural" presumido da história no bojo da ideologia capitalista: ela esconde a perversão da igualdade jurídica substanciada na desigualdade econômica da divinizada/mágica/transcendental propriedade privada dos meios de produção, que condenou milhões à venda da sua força de trabalho como única forma de sobreviver, quando os poucos escondidos por trás da Moeda n° 1 dizem ser natural essa condenação (DUTRA JR, 2015)

            A busca incessante da Moeda n° 1 pelos personagens do desenho de Walt Disney, Tio Patinhas, aborda a centralidade que a equivalência universal representada pelo dinheiro e o fetiche da riqueza abstrata dada pela posse da primeira Moeda exercem no conjunto da sociabilidade fundada no valor de troca e no mercado. A metáfora desenvolvida por Martins em seu texto: Tio Patinhas no centro do universo; exemplifica como as relações sociais estão fundadas na forma alienada de conceber o dinheiro em si com a posse da riqueza, eliminando o trabalho da constituição da produção e riqueza social, e condenando os seres humanos na busca sem sentido do fim em si da lógica autovalorativa do capital. Ver: MARTINS, J. S. Tio Patinhas no centro do universo. In: MARTINS, J. S. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, Wright Mills e Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto, 2014; p. 93 – 103” (DUTRA JR., 2015).

            Nesse contexto o campo da barbárie é o campo da velocidade (dos muitos tempos de vida sobrepostos e dominados pelos tempos de giro dos capitais individuais que se escondem enquanto capital social total), que Milan Kundera vê como a forma de êxtase que a revolução técnica deu de presente ao homem, o ser humano dá velozes passos para a barbárie, assim expresso em algumas linhas do próprio Kundera:

 

“Ao contrário do motociclista, quem corre a pé está sempre presente em seu corpo, forçado a pensar sempre me suas bolhas, em seu fôlego; quando corre, sente seu peso, sua idade, consciente mais do que nunca de si mesmo e do tempo de sua vida. Tudo muda quando o homem delega a uma máquina a faculdade de ser veloz: a partir de então, seu próprio corpo fica fora do jogo e ele se entrega a uma velocidade que é incorpórea, imaterial, velocidade pura, velocidade em si mesma, velocidade êxtase” (2011, p. 7 – 8).

 

            Enquanto isso, em Patópolis, o segredo da ordem não é ter, permanece sendo esperar ter, quantas coisas esperamos ter? (e quanto concentramos nessa esfera irrealizável?). Os mesmos dramas imensos que nos cercam no cotidiano das outras Patópolis (independentes de serem médias / pequenas); somos seres mutilados, porque materialmente ter nos priva de humanamente ser (MARTINS, 2014); essa é a marca de toda uma época, de uma forma histórica específica de experiência do espaço-tempo e de sua produção; uma experiência partida, negada.

Walter Benjamin (2012), em seu texto experiência e pobreza aborda o significado da experiência num mundo em crise, no contexto da Primeira Grande Guerra. A princípio fala da parábola de um velho que no seu leito de morte revela aos filhos a existência de um tesouro oculto em seus vinhedos. Ao cavar nas proximidades os filhos não encontram o menor vestígio desse tesouro. Chegado o outono, todavia, as vinhas produziram mais do que qualquer outra da região; depois os filhos compreenderam que o pai transmitira a eles uma certa experiência: “a felicidade não está no ouro, mas no trabalho duro” (p. 123). A experiência equivalia à comunicação pelos mais velhos aos mais jovens sobre inúmeras questões da vida e da existência. Mas se questiona sobre o alcance dessa mesma experiência nos dias de 1933, quando escreveu o texto: “Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam narrar algo direito? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?” (p. 123), dentre outras questões.

A geração de 1914 – 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história universal, com isso, ressalta Benjamin (2012), a forma clara com que é possível perceber que as experiências estão em baixa; na época da guerra era notável que os combatentes retornavam silenciosos dos campos de batalha, mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos; inclusive os póstumos livros de guerra da década seguinte não conseguiram trazer à tona experiências transmissíveis de boca em boca. Complementa com a ressalva de que nunca houvera existido “experiências mais radicalmente desmentidas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes [...]” e isso tudo envolto num “[...] centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras [...]” e lá “[...] estava o frágil e minúsculo corpo humano” (124). Que enfrenta filas para receberem ossos doados por açougueiros em Cuiabá, conforme amplamente noticiado em rede nacional, ou mesmo comprar arroz e feijão quebrados (sobra); a inflação é dessas experiências que a hegemonia e o ethos ideológico dominante conseguiram domar como experiência não comunicada, por que natural no âmbito da economia que parece sempre ter vontade própria ou mesmo vida própria, saltando aos olhos nas falas dos âncoras do jornalismo econômico de forma geral – o mercado sempre é muito mais bem tratado que qualquer dos convidados na Globo News.

O desenvolvimento do capital, impulsionado pela guerra, atou indelevelmente a técnica, sob o controle das “forças estranhas” do tempo de trabalho socialmente necessário ao destino da humanidade. Por essa razão é conveniente expressar mais algumas ideias de Benjamin a esse respeito:

 

“Uma forma completamente nova de miséria recaiu sobre os homens com esse monstruoso desenvolvimento da técnica. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre – ou melhor, sobre – as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarianismo e da gnose, da escolástica e do espiritismo, é o reverso dessa miséria. Pois não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização [...] Aqui porém revela-se com toda clareza que nossa pobreza de experiência é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e visões de mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, confessemos: essa pobreza não é apenas pobreza em experiências privadas, mas em experiência da humanidade em geral. Surge assim uma nova barbárie [...] Ela [essa nova barbárie] o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita e nem para a esquerda” (BENJAMIN, 2012, p. 124 – 125)

 

            Esse contexto nos torna tão resignados na nossa própria miséria, na nossa própria barbárie, que fica difícil compreender, ou mesmo expressar, as bases materiais que as produzem, pois ao final, a narrativa desse mundo é sempre o fim da história, o horizonte inegociável que se fecha; contudo o fardo do nosso tempo histórico permanece intocado.

As potências nascentes de um mundo fundado sob a capital exigiram desde cedo sacrifícios aos que, historicamente, não participariam do Banquete prometido pelo progresso à frente, apesar da impossibilidade de realização do mesmo sem os “não participantes”.

Uma passagem do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo, traz um diálogo entre o bispo D. Bienvenu e o convencionalista G. sobre acontecimentos e contextos históricos referentes aos desdobramentos da Revolução Francesa, onde G. recorda a tragédia de uma mãe no século XVII. Enquanto amamentava o filho é amarrada ao pelourinho, nua até a cintura, com o seio cheio de leite e o coração cheio de angústia; a criança mantida à distância, com fome empalidece, vendo cair o leite sem alimentá-la, agonizava; o carrasco diz à mulher, ao tempo mãe e lactante: - Abjura! -, oferecendo-lhe escolha entre a morte da criança e a morte da sua consciência. G. retorna o olhar para o bispo e questiona: “Que diz o senhor desse suplício de Tântalo aplicado a uma mãe?” (HUGO, 2017, p. 90 – 91).

Tântalo foi um lendário rei da Líbia, condenado por Zeus a ficar eternamente atado a uma árvore carregada de frutos, no meio de um lago limpídissimo, sem poder matar a própria fome e sede (HUGO, 2017).

O dilema enfrentado pela mãe e a analogia com a condenação de Tântalo oferece pouca escolha, em ambas as situações a morte de algo se faz sempre certa; pela fome, pela sede, pelo envenenamento, pela austeridade, pelo desemprego, pela perda sistemática de direitos e proteção social, pelo Estado mínimo ou pela consciência.

A vista do horizonte é uma casa, um enclave, no caminho do progresso; o prenuncio de uma realização que não oferece nada além da escravidão sísifica – referência ao mito grego de Sísifo, condenado a empurrar por toda a existência uma pedra ao topo da montanha que ao atingir o cume rolava abaixo recomeçando o trabalho.

A “escravidão sísifica” – valorização do valor – prendeu os homens de um determinado tempo histórico – o tempo do sociometabolismo do capital – ao poder estranho de produzir algo cuja utilidade não se fazia presente de imediato. Esse poder, inaugurado como riqueza para os novos tempos, pôs abaixo aquela casa na linha do horizonte, e o casal que a habitava – Filemon e Baucis, personagens de Fausto de Goethe – sucumbe ao que estranhamente convenciona-se entender por progresso, elimina-se entraves, que são, também, seres humanos; com eles a criança, o leite, a consciência e a utilidade do humano agora convertida na inutilidade da forma valor, a riqueza que não mais alimenta sem a mediação de uma equivalência geral do trabalho humano abstrato, que, todavia, não se encontra no trabalho do outro como concreto da necessidade e da vida.

Refletindo a história do pensamento econômico, Heilbroner (1996) reconhece que o mercado funda a nova organização da sociedade sob o capital, na medida em que o universaliza. A aposta do capital é alta: “O velho brado repercuta: Rende obediência à força bruta! E se lhe obstares a investida, Arrisca o teto, os bens e a vida” (GOETHE, 2011, p. 575).

Essa aposta representa uma condição a se reproduzir historicamente, condição sem a qual o capital não pode existir. A separação entre os trabalhadores, agora livres na medida das necessidades móveis do capital no contexto dos cercamentos – acumulação primitiva –, e os meios de produção. Condição que relega aos mesmos a satisfação das suas necessidades em mãos estranhas, agora dependentes do acesso aos meios de produção controlados pelos capitalistas.

A expressão ideal da relação material de base para o capital foi traduzida por Heilbroner (1996) na forma sob a qual a economia encontra-se com sua parteira, balbuciada na filosofia moral de Adam Smith, cuja mensagem pôs-se límpida: “A nova filosofia nasceu com um novo problema: como manter os pobres, pobres” (p. 41).

 

Derradeiras palavras (in)conclusivas

 

Soma de nossas desumanidades que não se comunicam, pois perderam a capacidade de enxergar o outro como humano, pois isso também lhe foi negado, a barbárie do capital funda-se nessa desumanidade completamente naturalizada, e as profundas decorrências desse processo (um mundo em que como diriam Cristhian Dunker e Vladimir Safatle o sofrimento psíquico é o próprio neoliberalismo).

Mas nessa barbárie cabe tanto os desfiles militares e espetáculos esdrúxulos quanto possíveis forem para garantir, por trimestre, uma das maiores séries históricas de lucratividade dos 4 maiores bancos brasileiros que negociam ações na Bolsa de Valores – Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander –, o crescimento da lucratividade atingiu 46,4% em relação ao mesmo período do ano passado, totalizando R$ 21,8 bilhões de reais3.

A crítica radical será sempre necessária num mundo como esse, para dirimir todas as fantasmagorias e externalidades metafísicas, e começar a enfrentar o estado de coisas atual com duas concepções que Marx desenvolve no texto citado de início: “a raiz do ser humano é o próprio ser humano” e que “a teoria se converta em força material ao se apoderar das massas”.

 

Notas

 

1. Texto elaborado para mediação na programação de abertura do semestre letivo 2021.2 vinculado à semana de integração do Departamento de Ciências Humanas – DCH VI da UNEB campus Caetité/BA. O tema geral proposto foi: Das armas da crítica a crítica das armas: a importância do pensamento crítico na luta contra a barbárie, tendo como palestrante a Profa. Dra. Alexandrina Luz Conceição UFS/PPGEO/GPECT.

2. Em 1843, Marx escreve algumas cartas ao seu editor nos Anais Alemães, Arnold Ruge, com quem ele planeja a edição de uma revista franco-alemã demonstrara como Marx entendia o que era a crítica, já nos primeiros anos de sua profícua produção bibliográfica: “a vantagem da nova tendência é justamente a de que não queremos antecipar dogmaticamente o mundo, mas encontrar o novo mundo a partir da crítica do antigo [...] A filosofia se tornou mundana e a prova cabal disso é que a própria consciência filosófica foi arrastada para dentro da agonia da batalha, e isso não só exteriormente, mas também interiormente. Embora a construção do futuro e sua consolidação definitiva não seja assunto nosso, tanto mais líquido e certo é o que atualmente temos de realizar; refiro-me à crítica inescrupulosa da realidade dada; inescrupulosa tanto no sentido de que a crítica não pode temer os seus próprios resultados quanto no sentido de que não pode temer os conflitos com os poderes estabelecidos [...]” (MARX apud BENSÄID, 2010, p. 10). O prenúncio do que seria a medida da efetiva crítica marxiana delineia-se – crítica compromissada com a radicalidade de todos os fatos concretos e com a superação de um mundo que é a imensa prisão para a maioria dos que o habitam, a crítica teórico-prática, a crítica centrada na totalidade, a crítica que não cruza os braços diante do mundo, tampouco o produz pela palavra – como os Crítico críticos; a crítica que só é crítica por se posicionar e lutar pela superação da ordem, da filosofia, da agonia da batalha e desse mundo que precisa de ilusões.

3. https://www.poder360.com.br/economia/maiores-bancos-lucram-r-218-bilhoes-no-1o-trimestre/.

 

Referências

 

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8º Ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012 – (Obras Escolhidas v. 1).

 

DUTRA JR, W. O (des)conceito de Homem na leitura do espaço-tempo  postulado na Geografia Humana: Os enigmas de uma Geografia Humana sem Homens. 2015. 274 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2015.

 

GOETHE, J. W. Fausto: uma tragédia – segunda parte. São Paulo: Editora 34, 2011.

 

HEILBRONER, R. História do pensamento econômico. São Paulo, 1996 (Col. Os Economistas).

 

HUGO, V. Os miseráveis. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

 

 

KUNDERA, M. A lentidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

MARTINS, J. S. Tio Patinhas no centro do universo. In: MARTINS, J. S. Uma sociologia da vida cotidiana: ensaios na perspectiva de Florestan Fernandes, de Wright Mills e de Henri Lefebvre. São Paulo: Contexto, 2014.

 

MARX, K. Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel. In: MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005 (p. 145 – 156).

 

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2006.

 

MARX, K. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

 

MARX, K. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. 2º Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.